Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Diários da Liberdade

Publicado em 08/04/2022 às 06:00.

Eu estava navegando despretensiosamente por um site de notícias e me deparei com uma matéria a respeito de um jovem que tinha feito fama no cenário musical nos anos 2000, mas pelo uso excessivo de drogas ele havia sido preso, o que deu fim à sua trajetória ascendente de pop star.

A notícia falava do Sander Mecca, que desde criança cantava em programas de TV e foi conquistando cada vez mais espaço pelo seu talento musical e carisma. Ele esteve à frente do grupo Comando, formado por adolescentes e que, junto a outras bandas, se apresentava na antiga “Caravana do Gugu”, do apresentador Gugu Liberato, que posteriormente deu espaço em seu programa televisivo para o lançamento do Sander como vocalista de uma banda de jovens rapazes chamada “Twistter”.

Como o texto falava que o Sander tinha sido preso por tráfico de drogas, sendo inocentado quase dois anos depois, e tinha escrito um livro dentro da prisão, imediatamente eu tentei encontrá-lo nas redes sociais com o objetivo de adquirir o livro, já que eram relatos da sua rotina diária num presídio de São Paulo. Mas ele fazia também, paralelamente, um retorno às suas histórias, resgatando vivências no passado sobre a sua infância, adolescência, a fama e o que veio depois dela.

E não é que depois de alguns dias eu tinha um novo amigo, com quem eu podia contar para falar não só do que eu vivia como voluntário nas unidades prisionais, mas para aprender, também, sobre a sua experiência com as drogas, a luta para se desintoxicar, além da perda do pai, a tentativa de se reerguer, dentre outros episódios da vida real.

Com base num filme antigo que assisti há anos, chamado “Escritores da Liberdade”, que decidi rever para não deixar passarem detalhes importantes, e com a recente leitura do livro do Sander, “Inferno Amarelo”, que eu tive a honra de fazer a apresentação, foi possível desenvolver um projeto que busca aliar cultura, educação e aspectos da saúde mental e emocional para fazer homens e mulheres privados de liberdade refletirem sobre seu passado e pensarem em suas perspectivas futuras, sem deixar de relatar fatos do seu dia a dia.

O projeto ganhou o nome de “Diários da Liberdade” e funciona de maneira muito simples, com um resultado que nos surpreende positivamente. Cada indivíduo privado de liberdade recebe um caderno e uma caneta e tem 60 dias para irem contando a sua vida. Ao voltarem no passado, para falarem da sua infância, eles conseguem reestruturar suas lembranças, rever algumas “portas abertas”, ou seja, situações conflitantes que eles não deram conta de resolver naquela época.

Eles também têm a possibilidade de usar o caderno para descrever suas angústias, alegrias, dúvidas. Mas não para por aí: ao se projetarem no futuro, eles apontam para uma perspectiva, algo que percebo que muitos não têm. Para alguns deles, parece que só há vida até ali, naquele dia.

Ao entregarem seus relatos, histórias de vidas humanas são descortinadas e em nenhum momento são encaradas com o viés do vitimismo, mas sim do protagonismo que possibilita fazer com que cada um se visualize como artífice da sua história.

Nós vamos acompanhando, com a ajuda remota de voluntários, para que cada relato seja acolhido.

No filme “Escritores da Liberdade” uma professora se desafia a sair da sua realidade e ir ao encontro de outras histórias, bem diferentes das suas, dando voz às experiências dos alunos, que nos mostram como cada um é tão diferente, mas, ao mesmo tempo, mostrando aquilo que liga cada um de nós: a humanidade.

Miep Gies, a mulher que abrigou a família da jovem Anne Frank da perseguição nazista, foi homenageada no filme “Escritores da Liberdade”. Ao ser chamada de heroína pelos alunos, a Miep Gies teria dito: não, não sou heroína. Vocês é que são heróis de suas lutas diárias. Eu só fiz o que tinha que ser feito, o que era certo a se fazer.

Tenho aprendido com cada história que leio do projeto “Diários da Liberdade”, que foi inicialmente lançado numa penitenciária da Grande BH. E ao ler cada relato, lembro da fala do C. S. Lewis em um dos seus livros em que ele analisa o sistema de ensino do Reino Unido, provocando reflexões sobre uma cultura densa já construída e os desafios de descobrir naquilo que é árido uma nova e oportuna possibilidade: “não cabe aos professores destruir florestas mas, sim, irrigar desertos”.

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