Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Dor na alma

Publicado em 13/05/2022 às 06:00.

Dentro de um contexto da minha palestra, eu falava sobre a dor relatada por uma pessoa que estava em depressão. Um jovem no auditório levantou a mão e nos disse: “eu entendo bem isso, a dor dela é na alma, não é?”.  E completou: “eu também já passei por isso”.

Eu estava com cerca de 80 jovens aprendizes falando sobre o nosso despertar, o olhar para a vida de maneira diferente, não que o que vamos ver seja melhor, mas que há outras perspectivas e cada uma delas – e elas todas, juntas - nos dão uma amplitude de visão.

Lembro bem quando comecei a dar aula em instituições de ensino superior. Convivendo diuturnamente naquele meio, “acreditava” que o “mundo todo” era estudante universitário. O meu mundo era aquele, era aquele o meu ponto de vista. Ao amadurecer um pouco mais, este ponto de vista é ampliado e consigo perceber algo que estava ali, do lado, mas encoberto, até por mim mesmo, por meus medos e limitações.

Um dia desses, numa conversa em redes sociais, uma discussão girava em torno das pessoas em situação de rua. Eu fiz um comentário dizendo que, em estando na rua, elas preferem dormir em grupos, dentro de instituições bancárias ou em calçadas que têm câmeras de filmagem. O debate veio da postagem de uma foto em que alguns homens estavam dentro de uma agência bancária, em São Paulo, deitados no chão, cobertos por papelão, dormindo. Boa parte achava que eles estavam ali aproveitando o conforto do ar-condicionado, mas eu estava em SP no dia da foto, próximo ao local, e a temperatura da capital estava um “gelo”.

As pessoas dormem em grupos, nas agências bancárias e em calçadas vigiadas por câmeras, para se protegerem do mal da rua, daqueles os possam roubar, que os violentem ou os matem. Mas isso eu só vim saber depois que conheci pessoas que vivem nas ruas de Belo Horizonte.

Mas a gente só consegue ter a real dimensão das coisas quando passa por elas. Empatia é necessário, pois nos humaniza, nos aproxima, mas nunca nos iguala na dor ou na alegria.

Cada pessoa é uma história que nós não vamos viver. Esta frase não é minha, mas não consegui achar o autor, ouvi ou li em algum lugar, mas me marcou, pois podemos entender que cada indivíduo carrega consigo experiências próprias, que por mais similares que sejam com as de alguém, ninguém as viveu a não ser ele. Ouvi-lo é um presente, para ambos, inclusive.

Na semana que passou um amigo pediu para conversar comigo. Ele me disse que carregava uma angústia que tinha que desabafar. Não sou profissional da saúde, mas sou amigo. Ouvir eu consigo, mas quando é necessário algo mais, sei do valor que um profissional tem.

Este amigo foi até a minha casa e começou dizendo que não tinha tantas dores físicas quanto as internas. Próximo aos 80 anos, já venceu a luta quatro vezes contra o câncer, mas durante a pandemia recebeu a notícia de que teria que lutar um pouco mais, pois um novo câncer se manifestou. Meu amigo me disse: “estou cansado por dentro”. Eu sorri de forma acolhedora, não com deboche. Ele me disse que se tivesse tido o primeiro câncer na adolescência, talvez não teria a maturidade para encará-lo. Agora, na velhice, a relação com a doença é outra, mas a dúvida é: “será que vale a pena entrar nesta nova batalha?”. Eu não tenho a resposta. Ninguém é igual a ninguém.

Meu amigo me disse que às vezes é preciso conversar com alguém mais isento, que não seja um desconhecido, mas que não tenha as dores que a família coloca numa notícia dessas, nem a “frieza” dos médicos.

Por muito tempo eu achei que ao me procurarem as pessoas queriam uma palavra, uma resposta, um alento. Eu me sentia constrangido, contraído, sem saber o que falar de fato. Não quero falar que “tudo vai ficar bem”, porque apesar de ser uma frase simbólica, esperançosa e de ânimo, não é autêntica.

Mas a maturidade me fez entender que segurar as mãos é melhor do que aconselhar. Olhar nos olhos com respeito e sem pressa é melhor do que citar um grande pensador. Ouvir o que as pessoas têm a dizer é melhor do que ir ouvindo e construindo a resposta, como se fôssemos sempre obrigados a ter respostas para tudo.

Eu também estou cansado. Cansei de gente que prega e cobra a felicidade como se ela fosse um produto disponível, acessível e adaptável a qualquer pessoa e momento. Não podemos sofrer, pois isso nos diminui; não podemos chorar, pois isso é sinal de fraqueza; sorrir em demasia é sinal de escárnio; depressão é falta de “roupa para lavar ou enxada para capinar”. Cansei de relações superficiais. Li um dia desses, no livro dos doutores Irvin e Marilyn Yalom: “o luto é o preço que pagamos por amar aos outros”.

Não quero me arrepender de não ter amado pelo fato de temer a dor da ausência. Quero mesmo é celebrar a presença, para que a partida seja de alegria vivida e não simplesmente idealizada.

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