Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Em honra de ‘mainha’

Publicado em 16/05/2025 às 08:53.Atualizado em 16/05/2025 às 16:04.

Mainha tinha seis filhos. Eu era a segunda filha, e abaixo de mim só vinham os meninos. Minha irmã mais velha não estudava, pois precisava cuidar de mim e dos meus irmãos. Era ela quem nos levava à escola, voltava correndo para preparar o almoço e cuidar de mainha, que já estava acamada. Meu pai é daqueles casos que saem para comprar cigarro e nunca mais voltam. Você já deve ter ouvido essa história, não é? — dizia ela, ao falar da própria vida, e seguiu contando.

No dia em que completei doze anos, minha mãe me chamou no quarto para conversar. Explicou que estava muito doente, que fazia o possível para melhorar, mas que não sabia o que seria de sua vida naquela cama. Disse que minha irmã mais velha já  estava exausta, mas era quem dava conta de tudo: ia ao posto de saúde, à farmácia popular, fazia as compras, ia ao mercado e ao hortifruti, esperando o fim do expediente para pegar as doações – frutas, verduras e outros produtos sem valor comercial.

Mainha foi falando de uma coisa, de outra, até chegar ao ponto que queria. Precisava pensar no futuro de todos nós. Os outros eram pequenos demais para se cuidarem, minha irmã era essencial em casa, e eu... Bom, disse que precisava me mandar para São Paulo, para ficar com uma família que cuidaria de mim. 

Naquela hora, chorei muito. Não queria ir. Disse a mainha que preferia passar fome, mas ficar com ela. Ela estava com os olhos avermelhados, as lágrimas brotando, mas manteve a voz firme. Insistiu, sem me dar chance de defesa. Disse que fazia aquilo por amor, porque queria o melhor para mim. A família que me receberia era conhecida de umas pessoas da igreja, e o vizinho, que era caminhoneiro e de confiança, me daria uma carona até a capital de um estado que eu nem conhecia. 

No dia combinado, peguei a mochila da escola e coloquei algumas roupas. Minha irmã penteou meu cabelo, jogou para trás, me arrumou como quem cuida de uma boneca – uma boneca que ela nunca teve. Eu tinha doze anos e não entendia nada daquilo. Minha mãe não me queria mais? O que foi que eu fiz? Pedi à minha irmã para conversar com ela, tentar convencê-la, mas mainha era amável e irredutível.

Subi naquele caminhão com o Jorge, um homem religioso e calado, que durante mais de 40 horas de viagem suava, ouvia rádio, bebia água, parava para urinar, mas pouco falava. Não era um homem ruim, apenas aceitou me levar. Depois soube que mainha vendeu algumas coisinhas dela para pagar aquela carona. Pagamento simbólico, mas que ainda assim teve o sacrifício do dinheiro da minha mãe. 

Chegamos a São Paulo e, no ponto combinado, ninguém me esperava. Jorge ligou para mainha, dizendo que estávamos no local indicado, mas ninguém tinha aparecido. Ele precisava seguir viagem, pois ainda iria para outro estado. Mainha pediu que ele me deixasse ali, que o casal devia estar por perto. Jorge foi embora, me deixando um papel com seu número de telefone, caso algo desse errado. Guardei na bolsinha da frente da mochila e fiquei sentada por horas. 

Depois de tanto tempo esperando, precisei ir ao banheiro e comer alguma coisa. Ainda tinha um restinho da comida da viagem, bolachinhas recheadas que Jorge havia comprado e me dado. Comi umas cinco. Por alguns dias, dormi na rua. O telefone do Jorge deve ter caído por um furo na bolsinha da mochila. Um dia, algumas pessoas da igreja passaram e  perguntaram onde estava minha mãe. Respondi que no interior da Bahia. Fizeram tantas perguntas, mas tantas, que comecei a sentir medo. 

Com o tempo, fui confiando em algumas pessoas da pastoral. Fiz amizade com elas, que acabaram me levando até uma assistente social. Demorou, mas conseguiram um contato da vizinha da casa de mainha.

Eu queria voltar. Mas minha irmã pediu para falar comigo. Chorando, disse que mainha tinha morrido dois dias depois da minha partida. Que a prefeitura levou os meninos menores para um abrigo e que ela só não foi porque estava trabalhando na faxina da vizinha, que assumiu informalmente sua guarda, provisoriamente. Minha irmã também era menor de idade.

Naquele dia, conheci a dor que não acaba. Achei que o choro ao ouvir de mainha que eu teria que ir para São Paulo fosse a maior dor da minha vida. Mas sempre pode haver uma dor ainda maior.

Uma das mulheres da pastoral perguntou se eu queria passar uma noite na casa dela, e eu aceitei. Ela percebia que eu estava sem chão, sem rumo, sem mundo. A ideia era ficar um dia, até que eu fosse encaminhada a um orfanato. Mas os dias foram se passando. Fiz dezoito anos ainda vivendo com ela. Aos 20, Carminha – minha mãe de alma – me chamou para conversar.

Disse que o câncer estava se espalhando e que os tratamentos já não faziam efeito. Ela não tinha filhos. Seu marido, meu pai de alma, já havia falecido. Nas sessões de quimioterapia, eu fazia carinho em sua perna enquanto ela recebia a medicação, ajustava sua blusa de frio, ajeitava a manta.

Naquela conversa, ela me disse que queria me ver cursando uma faculdade. Sabia que não viveria para me ver formada, mas queria ter a alegria de me ver entrando num curso superior. Eu me dediquei para realizar o desejo dela – que passou a ser meu também. 

Minha querida mãe de alma me viu cursar quase dois semestres da escola. Morreu apertando minha mão, dizendo que honrava mainha, por ter lhe dado o maior presente da vida delas. Formei-me professora por uma universidade – e mulher pelo amor de duas mães.

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