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Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Gratidão aos que vieram antes

Publicado em 24/10/2025 às 06:00.

Há cerimônias que dizem muito mais sobre o presente do que sobre o passado. Embora uma cerimônia de homenagem pareça ter como foco o passado, relembrar pessoas, feitos e histórias, na verdade ela revela muito sobre o tempo presente, sobre quem somos hoje e como escolhemos olhar para o que veio antes.

Quando uma comunidade decide homenagear seus antigos servidores, por exemplo, ela está mostrando valores atuais: respeito, reconhecimento, memória, humanidade. A forma como tratamos o passado revela o tipo de sociedade que estamos construindo agora. Não é só uma lembrança: é uma demonstração do que consideramos importante e de como queremos seguir adiante.

Assim, a homenagem que o Conselho da Comunidade da Comarca de Ribeirão das Neves prestou aos antigos funcionários da Penitenciária José Maria Alkimin, foi uma dessas ocasiões em que o tempo pareceu se dobrar sobre si mesmo. Um instante em que o passado se fez presente e o presente se curvou, respeitosamente, diante de quem ajudou a construí-lo.

A antiga Penitenciária Agrícola de Neves, erguida entre 1927 e 1938, foi a primeira penitenciária autossustentável da América do Sul. Um projeto ousado, idealizado em tempos em que a palavra “ressocialização” ainda não fazia parte do vocabulário cotidiano. Muitos dos servidores que ali trabalharam dedicaram suas vidas inteiras àquela instituição. Alguns envelheceram dentro de seus muros, testemunharam rebeliões, perdas e recomeços.

O evento aconteceu em um espaço simbólico: as antigas casas dos policiais que serviam na penitenciária. A esplanada onde ficam as casas, cuidadosamente organizada, parece um portal para a Neves de décadas atrás. No auditório, as cadeiras estavam dispostas com esmero, a mesa de autoridades composta por representantes do Judiciário, do Legislativo, da Polícia Civil e do Executivo municipal. No centro, a presidente do Conselho da Comunidade, Miriam Estefânia, e a juíza Bárbara Nardy, idealizadoras da cerimônia. Também presentes o diretor-geral do Departamento Penitenciário, Leonardo Badaró, o Diretor Regional, Renato Rabelo, representantes da Câmara Municipal (vereadores Claudinho de Neves e Rodinei Duarte), da Polícia Civil de Minas Gerais e o prefeito de Ribeirão das Neves, Túlio Raposo, que permaneceu durante todo o evento e fez a homenagem à história daquelas pessoas.

A Banda da Polícia Penal deu o tom de solenidade e nos encheu de emoção. Quando o Badaró, Diretor do Depen, anunciou que a banda seria oficializada, até eu, que não componho a corporação, fiquei feliz com a notícia. É um ato simbólico, mas repleto de significado: a confirmação de que o sistema prisional mineiro também produz cultura e que ela pode ir para além dos muros. Nietzche já dizia que “a vida sem música é um erro”.  

Os homenageados chegaram aos poucos, sorrindo, abraçando velhos colegas. Era visível a cumplicidade entre eles, forjada por décadas de convivência num ambiente de tensão e responsabilidade. Muitos haviam enfrentado juntos ao menos três, das quatro grandes rebeliões da unidade, nos anos de 1948, 1994, 1998 e 2002, e sabiam que, por trás de cada crise, havia histórias de vidas que nunca chegaram às manchetes das mídias.

A cada nome chamado, aplausos sinceros ecoavam pelo auditório. Quando o microfone foi passado a Seu Salvador, representando todos os demais homenageados, o silêncio tomou conta do espaço. Ele falou com a voz de quem conhece o peso do tempo e o valor da memória. Recordou o início das obras, mencionou o pensamento de Getúlio Vargas e as conversas com o diretor Jason Albergaria, figura histórica que, a convite do então secretário de Justiça Rondon Pacheco, implantou na unidade um sistema pioneiro de formação profissional para os detentos.

Ouvir Seu Salvador foi como abrir um álbum de fotografias amareladas, mas de imagem nítida. Em suas palavras havia mais que lembranças: havia reconhecimento. Ele não falava apenas do passado, mas do sentido de ter vivido para servir, de ter contribuído, à sua maneira, para que outros pudessem encontrar um caminho. E é assim que ele se mantém até hoje, com um abraço sincero e um convite para um café em sua casa.

Aquela cerimônia, aparentemente simples, carregava uma mensagem profunda. Num tempo em que a pressa e o imediatismo dominam as relações, é raro ver uma comunidade se reunir para agradecer. E é disso que se trata: gratidão.

O monge beneditino David Steindl-Rast, conhecido por sua reflexão sobre o tema, ensina que o caminho mais fácil e imediato para a felicidade é a gratidão. Não aquela gratidão vaga, dita por costume, mas a que nasce do reconhecimento verdadeiro. Ser grato, segundo ele, é parar um instante, olhar ao redor e perceber o valor das oportunidades, inclusive as que surgem depois do erro, do fracasso, da dor. “Não é a felicidade que nos torna gratos, mas a gratidão que nos torna felizes”, afirma o monge.

O que se viu naquela homenagem foi exatamente isso: a gratidão como ato de reconhecimento. A gratidão que ressalta ou devolve dignidade a quem serviu por tantos anos, muitas vezes de forma anônima. A gratidão que faz justiça simbólica a pessoas que sustentaram, com seu trabalho, a estrutura de um sistema que raramente oferece holofotes.

Há algo de transformador em agradecer. A neurociência já confirmou que o cérebro muda quando vivenciamos a gratidão. Ela ativa regiões ligadas à felicidade, ao bem-estar e ao senso de propósito. É como se o simples gesto de dar graças reorganizasse, por dentro, a forma como vemos o mundo.

Por isso, a mensagem de Steindl-Rast é tão atual. Ele diz que a gratidão surge quando vivemos algo que é valioso e reconhecemos que foi um verdadeiro presente. Não é preciso grandes acontecimentos. Às vezes é um encontro, uma lembrança, uma palavra dita na hora certa. Às vezes é apenas o fato de estar vivo, de poder seguir adiante.

Ao ver os servidores sendo chamados um a um, percebi o quanto é necessário que as instituições pratiquem a gratidão em vida. Como costumo dizer nas aulas de Endomarketing: devemos valorizar as pessoas durante o processo e não só ao final dele. Reconhecimento tardio é importante, mas o reconhecimento cotidiano é o que sustenta o sentido de pertencer.

O evento em Ribeirão das Neves foi, portanto, mais do que uma homenagem. Foi uma lição de humanidade. Já que o noticiário insiste em nos lembrar do que dá errado, é reconfortante testemunhar um gesto coletivo de gratidão. E gratidão é isso: um modo de enxergar o mundo que reconhece o valor do outro. Um olhar que, em vez de cobrar, agradece; em vez de julgar, compreende. É, como diz o monge, um caminho direto para a felicidade.

Como a gestão de Leonardo Badaró tem se pautado pelo diálogo e pelo respeito aos parceiros, atrevo-me a fazer um pedido: que esta iniciativa se torne um marco de sua administração, ampliando a proposta idealizada pelo Conselho da Comunidade de Ribeirão das Neves para todas as cidades onde a Polícia Penal atua. Que se incentive a realização de homenagens capazes de promover reconhecimento e fortalecer o senso de pertencimento, transformando cada evento em um verdadeiro gesto de valorização, e não apenas em uma cerimônia formal.

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