Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

No mês das mães, tsurus voam do cárcere e pousam na maternidade

Publicado em 12/05/2023 às 06:00.

Bem cedinho o sol já começa a bater no corredor que perpassa toda aquela ala do presídio. O barulho surge com o movimento dos guardas tirando os custodiados para o pátio.

A ala quatro superior foi toda transformada para abrigar os custodiados que se dedicarão ao artesanato, mas numa dinâmica diferente: em vez da família enviar os itens para os artesanatos em cela, o Conselho da Comunidade da Comarca de Igarapé providencia os insumos e tudo que ali for produzido será destinado a projetos sociais, da região ou os parceiros do Tio Flávio Cultural, que se dedicam ao atendimento de crianças, idosos, pessoas em tratamento de alguma enfermidade ou em situação de rua.

O faxina, que é o preso responsável pela distribuição da alimentação nas celas de uma ala, pega os engradados com pães embalados separadamente e pequenos saquinhos de leite, em porções individuais. O café vem em grandes garrafas térmicas, as mesmas utilizadas para colocar um suco que é entregue no almoço.

De cela em cela o faxina vai deixando a quantidade correta, contada e recontada, de pão e leite, e servindo uma dose de café a cada um que colocou suas xícaras de plástico nas grades. Quando eu chego para a atividade da semana, eles já perguntam: “Vamos fazer alguma coisa para o dia das mães?” Como eu estava na correria e sem criatividade, pedi a eles que me sugerissem, com os recursos escassos que temos, o que poderíamos fazer?

Um deles falou: “Vamos fazer borboletário, pois só precisa de papel e cola. O barbante a gente fabrica aqui”. Como eu fiquei na dúvida do que se tratava, um deles já começou a rasgar meia folha de caderno e demostrou como faria a borboleta. Amarrando uma sobre as outras, com um espaço entre elas, ligadas a um suporte em formato de xis, teríamos quatro linhas que sustentavam de três a cinco borboletas cada uma.

“Ah, mas isso é um móbile”, disse a eles, entendendo o que pretendiam fazer. Fiquei encarregado, então, de trazer um modelo de tsurus, aqueles pássaros feitos com dobraduras, num método japonês, que eles desmontariam para aprender como se faz.

O tal barbante que eles produzem já é meu velho conhecido. Cada um recebe uma embalagem pequena de leite por dia, o que se transforma em mais de mil saquinhos que vão parar no lixo diariamente. Em vez de descartar, eles pegam a embalagem, abrem, passam água e sabão, o mesmo que usam para tomar banho e lavar roupas, cortam a embalagem em tiras, amaram na grade e vão puxando e enrolado, até formar uma resistente linha usada para fazer umas sacolas trançadas que distribuímos nas ruas, com biscoitos ou produtos de higiene, para as pessoas que vivem em situação de desabrigo.

As linhas ganhariam cores, com pássaros e borboletas penduradas, num formato de móbiles que seriam doados às mães nesse mês dedicado a elas.

Em conversa com a equipe de comunicação do Hospital Risoleta Neves, conseguimos que esses presentes sejam entregues às mulheres da maternidade daquela instituição.

Inaugurada em 2007, a maternidade do Hospital Risoleta Neves é 100% dedicada ao atendimento do SUS e norteada por princípios de gestão e assistência que valorizam o trabalho multidisciplinar e o modelo centrado no parto humanizado. Como afirma a equipe do Risoleta: “temos um respeito à fisiologia do parto e às necessidades de cada paciente”. A maternidade destaca-se por ter uma das menores taxas de cesariana de Belo Horizonte e de Minas Gerais e realiza, por mês, cerca de 200 partos. Em 2022 foram por volta de 2.300 partos, sendo 76% deles normais.

Mulheres que são atendidas pelo SUS, num momento inigualável das suas vidas, serão agraciadas por móbiles feitos por mais de 140 custodiados do Presídio de São Joaquim de Bicas 1, numa parceria voluntária entre o Tio Flávio Cultural, o Conselho da Comunidade de Igarapé e o Departamento Penitenciário mineiro. Para que cada um daqueles presentes fosse construído, muita gente se mobilizou. Eles acabam sendo a materialização de um trabalho que visa proteger a sociedade ao passo que tenta construir com os custodiados uma responsabilidade conjunta por esta mesma sociedade a que eles pertencem e para onde voltarão.

Muita gente pode torcer para que eles fiquem por ali, abandonados à própria sorte, mas este não é o caminho mais adequado, uma vez que as cadeias devolverão estes homens e mulheres para a sociedade a qualquer momento.

Assim, na construção dos conceitos de responsabilidade, dignidade, respeito, nos colocamos numa tentativa quase que artesanal de chegar aos corações de cada uma daquelas pessoas que hoje se encontra atrás das grades.

As borboletas e tsurus significam paz, transformação, saúde, longevidade e liberdade. É levando em consideração esta simbologia, que as mulheres que realizam o parto neste período no Risoleta Neves receberão este presente como homenagem ao mês das mães, e que vem carregado do desejo de que esta nova vida que chega venha com todo o vigor de transformação da nossa realidade social. E que no futuro, esta criança saiba que um dos seus primeiros presentes foi fruto da união de muita gente que, mesmo desconhecida, se juntou para celebrar a sua vida.

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