Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

O bem que fiz, tê-lo feito é a recompensa

Publicado em 13/06/2025 às 06:00.

Uma amiga me contou, dias atrás, que alguns psicólogos e psiquiatras têm sugerido a adolescentes que participem de atividades voluntárias. A proposta, ao que parece, tem um propósito interessante e necessário: que eles se reconheçam úteis, que compreendam que a vida acontece nos vínculos, nos encontros, no cuidado com o outro. Que aprendam que a convivência traz alegrias, sim, mas também frustrações. E que tudo isso faz parte da vida. Mesmo.

Fiquei com aquilo na cabeça. O voluntariado é uma força tão potente e, no entanto, nem sempre reconhecemos todo esse seu potencial. Alegamos cansaço, falta de tempo, de preparo emocional, sobrecarga, rotina. Motivos que cabem em qualquer desculpa. Mas, se pararmos um instante para olhar ao redor, veremos que há vida demais pulsando onde há troca. Que há sentido demais onde há cuidado.

Não, não acredito que uma ação social esporádica vá consertar o mundo. E nem acho que o voluntariado precise, necessariamente, passar por grandes instituições ou movimentos estruturados. Às vezes, a gente faz algo por alguém, seja uma escuta, um prato de comida, uma carona, um olhar com atenção, sem sequer chamar isso de voluntariado. Mas é. Porque nasce do desejo de ajudar, do gesto genuíno, da entrega sem segunda intenção. Fazer porque é o certo a ser feito.

Pra mim, voluntariado é mais hábito do que evento. É mais comportamento do que falatório. Assim como as virtudes, que são desenvolvidas na prática, ele se incorpora ao nosso jeito de estar no mundo. E passa a fazer parte da nossa vida sem anúncio, sem legenda, sem selfie (e se tiver, que seja para encorajar mais pessoas, para convidar mais gente). Como na velha frase do folclore político: "Fi-lo porque qui-lo." Fiz porque era preciso. E pronto.

Tem uma frase que carrego comigo desde que um amigo, o promotor mineiro Tomaz de Aquino, contou que a leu numa igreja na Itália. Diz assim: “O bem que fiz, tê-lo feito é a recompensa”. Que coisa linda. Fazer o bem, não como espera de retorno, mas como um jeito de estar em paz com a própria convivência. É isso mesmo, não errei, não. Aqui pode ser usado o termo “consciência”, mas o que quero ressaltar é aprender a conviver. O bem, quando feito assim, sem vaidade, deixa um rastro de leveza.

E, em tempos tão digitais, é bom lembrar que a tecnologia também pode ser ponte. Que ela pode servir para criar vínculos em vez de barreiras. As redes podem ser usadas para outras finalidades, que não sejam crueldades, mentiras, destruições e humilhações, mas também para construir, acolher, escutar. Porque, verdade seja dita, só deixar de fazer o mal não basta. É preciso fazer o bem. Em O Livro dos Espíritos, há uma pergunta que me toca fundo: “Será suficiente não se fazer o mal?”. A resposta é firme: “Não: é preciso fazer o bem, no limite das próprias forças, pois cada um responderá por todo o mal que tiver ocorrido por causa do bem que deixou de fazer.” (Allan Kardec, questão 642.)

Durante a pandemia, quando os abraços foram suspensos e a presença virou ausência, no Tio Flávio Cultural — movimento voluntário que coordeno — não quisemos parar. E criamos formas de continuar próximos dos nossos assistidos, mesmo à distância. Duas dessas ações, voltadas para pessoas idosas em instituições de acolhimento, continuam vivas até hoje. E seguem nos ensinando.

No Diários da Solidariedade, por exemplo, o voluntário compra dois cadernos: um para si e outro para uma pessoa idosa que vive em uma das instituições parceiras. Ambos escrevem suas histórias de vida. Depois, trocam os cadernos. Começam, então, a trocar cartas. E ali, no papel, nas memórias escritas com calma, nasce algo bonito e profundo. Amizade, talvez. Ou apenas um afeto que vem das palavras.

O outro projeto se chama Esperançar. Nele, o voluntário telefona, semanalmente, para uma pessoa idosa. Eles conversam sobre tudo: receitas, lembranças, expectativas, saudade. Ao final de alguns meses, o voluntário organiza essas conversas e transforma em um livro, impresso com cuidado e entregue àquela pessoa. É um gesto de reconhecimento. Um modo de dizer: sua história importa. Você importa.

Estamos com uma nova edição do Esperançar em andamento. E, entre tantas histórias que se entrelaçam, há a da Dona Teresinha, uma das idosas atendidas que teve sua saúde bem fragilizada. Luísa, a nossa voluntária, resolveu agir com delicadeza e urgência. Mesmo antes de terminar o ciclo de conversas, escreveu o livro com as histórias da dona Teresinha. Fez uma capa linda. E ainda preparou uma boneca de pano com o nome dela bordado na roupa.

A voluntária nos contou sobre esse episódio. E suas palavras, simples e verdadeiras, dizem muito:

“Foi no Projeto Esperançar que tive a chance de viver uma das experiências mais marcantes da minha vida. A cada encontro com a dona Teresinha, um misto de sentimentos tomava conta de mim. Hoje, me pego triste por vê-la tão debilitada — a vida tecendo suas marcas implacáveis. Mas essa tristeza não ofusca a imensa alegria de tê-la conhecido. Sou profundamente agradecida por ter feito parte desse processo de escuta e escrita. Cada palavra que ela compartilhava comigo era um tesouro. Essa troca foi um presente. Dona Teresinha me deu suas histórias — e me deu também uma nova maneira de olhar para a vida.”

“O bem que fiz, tê-lo feito é a recompensa.” Talvez seja isso mesmo que nos salve. A capacidade de ver o outro. De ouvir com o coração. De estar presente, mesmo sem estar fisicamente ao lado. De fazer o bem, sem cartaz, sem palco, trabalhando a nossa vaidade. O bem que nos toca e fica. 

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