Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

O 'eu te amo' de uma mãe é medicinal!

Publicado em 05/01/2024 às 06:00.
Foi um dia de domingo, em plena pandemia, mas em um período em que estávamos com menos medo e já ousávamos sair de casa para visitar as pessoas que a gente sentia a distância e a falta, que eu resolvi ir a Santa Luzia, cidade da Grande BH onde minha mãe mora. Passei um dia agradável com ela, apesar de mantermos as máscaras, num combinado que fizemos que nos dava uma segurança e aquietava nossa ansiedade.

Eu conversava sobre a vida, sobre a importância da criação e dos valores passados pelos meus pais, como que cada filho seguiu seu caminho, mas sempre guiados por este amor que nos ensinou tanto e nos alimenta até hoje.

Minha mãe era professora, trabalhava bastante e era bem rígida e justa em relação à nossa educação. Uma mulher ágil, decidida. Na minha percepção de criança, era ela quem assumia a frente de tudo, já que meu pai trabalhava com a representação de indústria farmacêutica e, por isso, viajava constantemente.

Enquanto eu estava na fase infanto-juvenil, nunca vi minha mãe chorar. Sempre a via como uma fortaleza, mas sei que ela devia buscar o conforto para as suas dores com a sua única irmã ou com alguma amiga, pois ninguém dá conta de passar por esta vida represando suas dores.

Depois de um bate-papo gostoso, um café passado na hora e uns pães de queijo saídos do forno, no fim da tarde daquele dia eu anunciei a minha partida, pois ainda passaria em um abrigo de crianças, hoje chamado de Casa de Acolhimento, para deixar umas doações para os meninos que moravam provisoriamente naquele lugar. A ideia era chegar do portão, vê-los pela janela, conversar um pouco, mas sem a possibilidade de abraços, como sempre acontecia, de maneira natural, ao chegar aos abrigos.
Uma amiga me encontraria lá, para que a gente pudesse passar, depois, em outras duas casas, deixando refrigerantes e doces para quebrar a aspereza do isolamento sanitário.

Bati à porta e ouvi os meninos correndo, se movimentando, para saberem quem era. As crianças em abrigos amam visitas. Os adolescentes podem até gostar, mas nunca demonstram. Ficam sentados, com os seus celulares, em seus mundos particulares e é com muito jeito que a gente consegue trazer a maioria para a roda.

As crianças gritavam animadas, agoniadas para que o educador pudesse abrir o portão e revelar, de uma vez por todas, quem batia à porta. Quando nos viram, foi aquela festa. Burlaram a barreira de contenção feita por uma das educadoras, correram para cima de mim e da outra voluntária e abraçaram as nossas pernas. Lembro claramente desta imagem, já que em todas as ocasiões a gente abraçava um a um, mas nesse dia eu só levantei as duas mãos, afastando-as deles, como se o vírus da Covid estivesse grudado na ponta dos meus dedos.

A ordem para voltar para a janela foi dada e eles obedeceram, não prontamente, mas foram, aos resmungos alguns e outros pulando feito pipoca, querendo que os demais se aquietassem para que eu dissesse o que trazia para eles.
Esta foi uma visita sem demora. Entreguei as sacolas, mas antes fui tirando item a item, no que eles aplaudiam. Era uma cena de filme, a alegria deles por ver alguém conhecido, mas diferente dos educadores do dia a dia, e de receberem as guloseimas, que seriam devoradas assim que as “tias da cozinha” autorizassem. Naquela janela imensa, em cima do sofá que ficava dentro da sala, seis a oito meninos disputavam um espaço para se tornarem visíveis.

A despedida nunca foi a melhor hora, pois eles sempre vêm para pedir para ficar mais, fazem fila para o abraço, se reúnem na porta para nos ver indo embora. Mas, desta vez, limitados ao quadrado da janela, sem poder sair dali, parece que a angústia da partida foi maior para alguns. Um dos meninos, o maiorzinho, que devia ter uns 10 anos, olhou para mim e disse: “Tio, você volta, né?”. Eu voltaria mais algumas vezes, até que esse abrigo fosse desativado e os meninos encaminhados para famílias acolhedoras, o que eu acredito que foi o melhor para eles.

Entrei no carro da minha amiga e choramos juntos. Ela, que tinha perdido a mãe recentemente, e eu, saído da casa da minha, só pensávamos como que um “bom dia”, “fica com Deus” e “eu te amo” de uma mãe são medicinais. Tirados do convívio dos seus familiares, por questões diversas, inclusive pela morte de quem amavam, eles estavam ali, brincando, sorrindo, abraçando, reagindo às dores como as crianças podem reagir, esperando que uma família apareça e entenda o que é a adoção, diferente da compra de um item em feira livre, que se vem com um amassado, pode-se voltar, trocar ou devolver. Adoção não é tentativa, joguinho de certo ou errado. É decisão, madura, que impacta a vida de todos, mas que requer mais sobriedade e conhecimento que romantismo e euforia.
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