Quando conheci Odette Castro, eu ainda não sabia que estava diante de alguém que havia reinventado o significado da palavra resistência. Foi por meio de um amigo que ouvi falar do projeto Uma flor por uma dor, criado por Odette em um dos períodos mais delicados de sua vida, quando sua filha Beatriz, nascida com uma doença rara, começava a se despedir do mundo. O projeto veio pouco antes da morte da filha, como um modo de traduzir o tempo que restava em gestos de amor.
Tempos depois, numa pauta de uma entrevista que eu faria com ela, havia apenas um esboço de algumas perguntas. Eu imaginava ouvir uma história triste, mas o que encontrei foi algo muito mais profundo: uma mulher que aprendeu a bordar gratidão enquanto se preparava para o adeus. Não que não tivesse dor. Tinha, e muita. Mas eu via a gratidão de uma mãe de duas filhas que, mesmo ferida, celebrava.
Nunca mais esqueci essa sua resposta. Ela parecia conter o peso de uma vida inteira. Naquele instante, percebi que eu estava diante de uma mãe que havia atravessado o indizível e que, em vez de erguer muros, plantava flores pela cidade que a acolheu.
Foi assim que nasceu o projeto. Odette, sozinha, começou a confeccionar pequenas flores de crochê e a acoplá-las nas árvores de Belo Horizonte. Uma flor por uma dor. Um gesto singelo que, com o tempo, passou a carregar camadas de sentido ainda mais profundo: memória, beleza, resistência, afeto.
As flores de Odette não são apenas homenagens à filha que partiu. São lembretes de que o mundo ainda pode ser gentil. São declarações silenciosas de que o amor pode florescer mesmo quando o chão parece deserto.
“As flores de plástico não morrem”, pensei. Nós é que morremos, e por isso não devemos ter uma vida artificial.
Foi nesse território que ela começou a plantar flores. Eu entendo que sejam pequenos gestos de reconciliação com o mundo. Cada flor colocada em uma árvore era uma conversa interrompida com a filha, um modo de continuar dizendo o que não se pôde dizer. É desta forma que compreendo esses atos de amor.
Hoje, o projeto Uma flor por uma dor já é conhecido. As flores de crochê coloridas, espalhadas por praças, escolas e museus, tornaram-se símbolos de resistência das minorias, contra o racismo, o capacitismo, o feminicídio, a homofobia e todas as formas de exclusão. Cada flor doada ou pendurada é uma lembrança de que ainda há beleza possível, mesmo quando a realidade insiste em ser dura.
Odette sabe o que é luto. Mas aprendeu também que lutar não é brandir armas, é continuar viva num mundo que naturaliza tantas formas de morte. Em um país que ainda justifica o ódio, ela escolheu responder com delicadeza.
Disse que, depois da perda, desabou em pedaços. Um dia, olhou para o marido e para o outro filho, que ainda estavam ali, vivos, esperando por ela. Não soube dizer de onde veio a força, mas começou a recolher os próprios cacos. Foi se costurando aos poucos. “Voltei”, contou, “mas não inteira. Voltei remendada.”
Essas mães nos ensinam que o tempo não apaga nada. Ele apenas muda a cor da lembrança. A ausência não desaparece, só se acomoda em outro canto da alma. Como me explicou um neurocientista certa vez, o cérebro cria mecanismos para guardar a dor em uma espécie de despensa. Ela não fica pulsando o tempo todo, mas também não é digerida. De tempos em tempos, ela rola da prateleira. E, quando isso acontece, no aniversário, no Natal, no Dia das Mães, ela quica no peito, desajeitada, imprevisível, como uma bola de basquete sem cesta.
Ninguém esquece quem amou. Nenhum filho que se foi é substituído. Não há novo amor que ocupe esse espaço. O que há é um rearranjo silencioso, uma convivência entre a saudade e a vida que insiste em continuar.
A memória caminha conosco. Às vezes disfarçada em rotina, outras vezes em música, cheiro, fotografia. Ela nos acompanha, como uma sombra que não se despe nem ao sol. E talvez seja esse o sentido da existência: continuar caminhando, ainda que remendado, levando conosco aqueles que amamos.
Há algo de profundamente político nesse gesto. Num tempo em que a pressa nos dessensibiliza, ela nos obriga a olhar para cima, a reparar no detalhe, a perceber a presença do outro. Suas flores nos convidam a uma pausa: um instante breve de humanidade no meio do concreto.
Hoje, além do projeto das flores, Odette trabalha com letramento em comunicação inclusiva. Ensina o que deveríamos ter aprendido desde sempre: a escutar o outro, a nomear sem ferir, a perceber o quanto a linguagem pode ser ferramenta ou arma.
O filme Eden, do diretor Ron Howard, traz uma frase do personagem Dr. Ritter que me veio à memória ao escrever este texto: “Qual é o verdadeiro sentido da vida? Dor. Na dor encontramos a verdade. E na verdade, a salvação.” A frase não romantiza o sofrimento; apenas reconhece que há, na dor, um tipo de lucidez que nos obriga a olhar para o essencial.
Odette, com suas flores de crochê, diz muito sobre continuar tecendo, mesmo quando o novelo parece ter acabado. Afinal, é disso que se trata: continuar, mesmo quando a alegria é triste.