Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

O olhar de um pai

Publicado em 01/04/2022 às 06:00.

Foi lendo um livro do psicólogo Robert Leahy, um autor dedicado ao tema da terapia cognitivo-comportamental, que conheci a história do jornalista Jean-Dominique Bauby, que nasceu em 1952 e se notabilizou por chegar ao posto de editor da consagrada revista Elle, na França.

Na verdade, talvez o que tenha notabilizado o Jean-Do, como os amigos o chamavam, tenha sido um fato que deu início a uma outra fase da sua vida. O jornalista, no auge da sua produção profissional, acabou tendo um Acidente Vascular Cerebral, impedindo a comunicação do seu cérebro com as outras partes do corpo.

Acordando de um coma de quase três semanas, ele abre os olhos, ouve os médicos e enfermeiras conversando, mas descobre que toda a tentativa de falar é vã, uma vez que nenhum som sai da sua boca.

No dia seguinte um neurocirurgião vem explicar de fato o que aconteceu. Após o AVC, por um avanço tecnológico os médicos conseguiram reanimá-lo e trazê-lo de volta à vida. Ele, ouvindo isso, sem reação, brinca em pensamento: “vida, isto é vida?”.

Ele é comunicado que sofre um tipo raro de doença, chamada pelo assustador nome de “Síndrome do Encarceramento”, ou Locked-in (trancado para dentro). Com apenas os dois olhos se movimentando, a boca torta e salivando, ele ainda recebe uma outra surpresa: um dos olhos terá que ser obstruído, pois estaria bem seco e isso poderia afetá-lo.

Jean-Do estava ali, inerte, numa cama de hospital, em meio a desconhecidos, observando em volta até onde o único olho o permitia.

Duas profissionais de saúde, uma fonoaudióloga e uma fisioterapeuta, o visitam para começarem os trabalhos de melhoria da sua qualidade de vida e uma delas estabelece uma forma de comunicação com o jornalista. Criou um alfabeto, colocando as letras mais usadas do vocabulário francês primeiro e as menos usadas na sequência. A cada letra apontada, e depois simplesmente falada, pela experiência que ambos adquiriram, Jean-Do ia piscando uma vez para “sim” e duas para “não”. Ela anotava, pacientemente.

Foi assim que ele conseguiu escrever as suas histórias e dali saiu um livro chamado “O escafandro e a borboleta”, que deu origem a um filme, com o mesmo nome, lançado em 2007 e que recebeu diversos prêmios.

Escafandro é um equipamento que tem uma espécie de mangueira que faz a ligação daquela roupa de mergulho com o mundo exterior à água. Ela é toda lacrada para evitar a entrada ou saída de qualquer espécie. Era assim que o jornalista sentia o seu corpo, aprisionado naquela “armadura” hermeticamente cerrada.

Mais tarde ele descobre a “borboleta”, que é o seu pensamento, o seu espírito livre, o único ali que tinha liberdade, apesar da insistência do escafandro de ser mais pesado.

Pai de duas meninas e um menino, o jornalista pediu que os filhos não o visitassem, mas reconsiderou, tempos depois, recebendo as crianças justamente no Dia dos Pais. Esta data que a vida toda foi pouco especial para ele, que ele sequer comemorava, era agora um presente que o fazia chorar em silêncio, ao menos o silêncio da fala, pois a mente estava ali tagarelando e tecendo histórias.

O filho pequeno limpa a saliva que escorre da sua boca. Ele chora, pois a criança está tão perto e ele não pode abraçá-la, não pode senti-la. Se arrepende de não ter estado mais tempo e ocasiões com os filhos, de ter beijado os seus pescoços, apertado aqueles corpinhos.

No filme dá para perceber cada cena sendo construída sem pena, sem dó, mas com muito amor e reconhecimento da importância daquelas pessoas, daqueles encontros.

Eu me senti, lendo o livro, dentro daquele corpo inerte. O jogo de cenas do filme também nos permite isso, com os piscares do olho e a ânsia de viver aqueles momentos, tão importantes para todos.

Os profissionais de saúde, cuidadosos, cientes de que suas palavras eram ouvidas e seus sentimentos percebidos pelo paciente. Eles foram fundamentais na história de vida desse pai, de 43 anos, que preso dentro de si, se descobriu livre.

Uma das partes que mais me sensibilizou foi do Jean-Do, naquele lindo e talvez primeiro Dia dos Pais em que ele realmente estava “presente”, pensando: “um esboço, um pedaço, uma sombra de pai ainda é um pai”.

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