Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

População de rua: preocupação estética ou humana?

Publicado em 26/09/2025 às 06:00.

Há algumas semanas tenho acompanhado, no Threads, a rede irmã do Instagram, pessoas que vêm visitar Belo Horizonte e saem reclamando de diversas situações: trânsito caótico, sujeira nas ruas, ausência de beleza na cidade, excesso de pessoas em situação de rua.

Os comentários nessas postagens se dividem. Alguns turistas e até mineiros concordam com as críticas; outros, nascidos ou criados em Minas, defendem a cidade com argumentos mais amenos, como: “a pessoa não foi aos lugares certos” ou “visão limitada de quem passa voando pela cidade”. Há também os mais calorosos, que disparam: “se não gostou, não volta”.

Ainda estou construindo esta matéria, pois exige pesquisa e compreensão das responsabilizações. Quero entender melhor as queixas sobre praças precisando de mais cuidados, calçadas intransitáveis, falta de educação no manejo do lixo, que acaba sendo descartado inadvertidamente. Muitos justificam a atitude alegando que não há lixeiras por perto. Em alguns casos, isso é verdade; em outros, trata-se de descuido ou até vandalismo, quando as lixeiras são destruídas. E as reformas dos espaços públicos têm nos dado orgulho?

Neste texto, não entrarei em questões sensíveis como segurança, saúde e educação. Meu olhar será mais de “drone”, mas buscando se aproximar das reclamações que vejo multiplicarem sob a ótica de quem apenas nos visita.

Uma dessas reclamações é o crescimento da população em situação de rua. Não sei de onde vêm todos os que criticam, e não digo que estejam errados, mas trago uma comparação. Voltei de São Paulo, destino que frequento quinzenalmente, e atesto que lá o fenômeno também é intenso e não é novo. Sim, São Paulo é o lugar para onde convergem sonhos de brasileiros de quase todo o país, mas o crescimento da população de rua atinge praticamente todas as grandes cidades e capitais.

O assunto é complexo demais para discursos simplistas. Não se trata de dizer: “eles não querem trabalhar”, “são todos drogados” ou “devia matar quem não aceita ajuda”, como sugeriu, absurdamente, um pastor em Divinópolis(MG) durante uma reunião oficial.

Há muito tempo, instituições sérias se debruçam sobre esse movimento migratório que leva tantas pessoas para as ruas. É importante destacar o trabalho da Pastoral do Povo de Rua, do Movimento Nacional da População de Rua e do Centro Estadual de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Materiais Recicláveis (CEDDH MG). Essa última entidade atua na defesa e promoção dos direitos humanos, com foco no protagonismo das pessoas em situação de rua e dos catadores de recicláveis.

O CEDDH MG conta com apoio institucional de órgãos governamentais e poderes constituídos, assim como a Defensoria e o Ministério Público e o Tribunal de Justiça,   mas não é um órgão do governo. Também mantém parcerias com universidades como PUC Minas e UFMG. Nesta semana, durante um seminário, apresentou um diagnóstico participativo com a população de rua (atente-se que foi com e não da população de rua). O levantamento trouxe um aprofundamento riquíssimo das questões vividas por quem está nas ruas de Belo Horizonte, Governador Valadares, Montes Claros e Uberlândia.

Entre os principais problemas relatados, em ordem de incidência, estão: violência e violações de direitos (170 menções), dificuldades diversas (111), preconceito e desrespeito (78), moradia (39), emprego e renda (24), assistência e apoio (20), dependência química (18) e conflitos internos (12).

Jorge, o apresentador do diagnóstico, conduziu a fala com maestria. Ele próprio já viveu nas ruas, após um período de depressão, e sabia na alma o que estava relatando.

Ao sair do seminário, recebi de uma amiga, bastante envolvida nessa causa, a notícia publicada pelo jornal O Tempo: “Projeto de lei que pode retirar pertences de pessoas em situação de rua avança na Câmara”. A reportagem informava que a proposta visa desobstruir vias e passeios públicos, mas a oposição denuncia que o texto é, na prática, uma tentativa de arrancar os poucos bens pessoais de quem vive nas ruas. Minha amiga me escreveu angustiada, perguntando: “como alguém pode deliberar ferrar quem já não está bem de jeito nenhum?”.

Os defensores do projeto alegam que os pertences acumulados atrapalham o trânsito, que muitas pessoas que estão na rua fazem necessidades nas ruas, ameaçam moradores ou chegam a ter relações sexuais em via pública. São considerações sérias, e entendo perfeitamente os moradores que têm medo ou que não querem um amontoado de coisas diante de suas portas. Também compreendo lojistas que se sentem prejudicados ao encontrar corpos deitados sobre papelões em frente a seus estabelecimentos. Eu também vivo nessa mesma cidade.

Porém, fico pensando. Ao tratar um assunto tão sério, será que conseguimos trazer à tona o que há de mais humano dentro de nós? Podemos mudar o olhar e, em vez de pensar apenas em “tirar da minha calçada”, tentar entender a história que levou alguém a estar ali? É possível refletir sobre situações como: nos abrigos, não se pode entrar com animais de estimação. Se o morador de rua tem um cachorro, muitas vezes seu único amigo, ele precisa deixá-lo para trás. Entre ir para um abrigo e deixar um filho de fora, ou permanecer com ele na rua, o que você escolheria? É por isso que o amor pelos animais de estimação permite essa comparação válida, tanto para pobres quanto para ricos.

Ou ainda: imagine que alguém diga a você que todos os seus pertences devem caber em um saco plástico ou em uma mochila, e que aquilo que você acumulou em anos precisa ser abandonado. Escolha, em sua casa, o que cabe numa mochila. Para quem está em situação de rua, esse “tudo” pode significar apenas uma sacola e, no máximo, um carrinho de rodas. Mas, se o carrinho não entra no abrigo, a pessoa tem que escolher entre o pouco, menos ainda. Ou ficar fora.

Você consegue se imaginar dependente químico e precisar passar uma noite sem a química? Consegue imaginar uma pessoa em situação de rua em São Paulo dizendo: “ando no asfalto, e não nas calçadas, porque tenho medo das pessoas terem medo de mim”?

Precisamos entender o que leva pessoas a viverem em situação de rua. Essas pessoas também desejam sair dessa condição, muitas vezes mais do que conseguimos imaginar. Assim, queremos as mesmas coisas, talvez por caminhos diferentes. A solução não está na guerra, na repressão ou na retirada forçada. É preciso pensar, ouvir e compreender as complexidades. Não são apenas as drogas, apenas o desemprego ou apenas os adoecimentos mentais. É uma mistura de tudo isso e de muitos mais fatores.

Não podemos nos permitir desumanizar alguém só porque nossa calçada está suja. Precisamos, sim, entender o que cada um de nós pode fazer para transformar a realidade da cidade em um espaço melhor de convivência. Tudo o que diz respeito à população em situação de rua deve continuar nos incomodando, não apenas pelo aspecto estético, mas, sobretudo, pelo aspecto humano.

Em uma releitura do lema “nada sobre nós, sem nós”, Rafael Roberto, participante da mesa de abertura do seminário, reforçou a importância de valorizar o protagonismo das pessoas em situação de rua ao dizer: “Tudo sobre nós, com nós”.

Para saber mais sobre o diagnóstico, acompanhe: https://www.ceddhmg.org/ .

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