O convite foi feito por Angelita Mercês, que atua no Conselho da Comunidade da Comarca de Igarapé, em Minas Gerais, e mora na cidade de São Joaquim de Bicas. Foi por iniciativa dela que se tornou possível o livro Ainda há céu lá fora, uma obra composta por textos de pessoas privadas de liberdade em três unidades prisionais: os presídios São Joaquim de Bicas 1 e Bicas 2, e a Penitenciária Jason Albergaria.
Angelita inscreveu o projeto na Lei Paulo Gustavo e teve a proposta aprovada. O objetivo era que o livro fosse escrito, publicado e distribuído para escolas do município, além de bibliotecas e unidades de saúde. Com isso, o acesso à leitura de textos produzidos dentro do sistema prisional se ampliaria, alcançando educadores, estudantes, profissionais da saúde, da assistência social e leitores em geral.
Fui convidado para que o projeto de escrita que desenvolvemos pelo Tio Flávio Cultural, em parceria com o Conselho da Comunidade, pudesse dar visibilidade às tantas histórias contadas nos projetos voluntários voltados para a educação que realizamos em unidades prisionais. A proposta era que quem lesse o livro pudesse compreender um pouco mais quem são essas pessoas antes do crime: como viveram a infância, qual era sua relação com a família, com a escola, com a comunidade. Refletir, também, sobre o impacto da ausência de uma educação estruturada, e como isso pode contribuir para trajetórias marcadas por vulnerabilidades.
Acima de tudo, está a família. O impacto de um ambiente familiar desestruturado, a quebra de vínculos afetivos e o abandono deixam marcas profundas. Em muitos relatos, observamos a ausência paterna como ponto comum, e a sobrecarga das mães que, para sustentar os filhos, precisaram se afastar durante longos períodos. Não foi por negligência, mas por necessidade. Muitas se culpam, mesmo tendo feito o possível. Delegaram os cuidados a terceiros, mas não o amor. Ainda assim, influências externas chegaram, e nem sempre foram positivas.
Esse ponto já permite uma reflexão: a necessidade de diálogo dentro das famílias, a construção de uma escuta mais qualificada, e a presença, mesmo nas ausências inevitáveis. Isso vale para os pais, para as mães, para os avós — muitas vezes responsáveis por netos que ficaram sem referência direta dos pais.
São histórias fragmentadas. Ao tentar compreendê-las, não mudamos o passado, não entregaremos momentos felizes àquelas crianças do passado e nem perdão a pessoas que foram vítimas dos adultos do presente, mas podemos repensar nossas próprias relações familiares, nosso papel como cidadãos e como parte ativa da sociedade. Como contribuímos ou deixamos de contribuir para o ambiente em que vivemos? Como fortalecemos, ou não, as redes que deveriam amparar não só aos que amamos, mas aos que dividem o mundo com a gente?
Costumo citar o título do livro da professora Grazi Mendes: Ancestrais do futuro. O que fazemos hoje tem impacto direto nas próximas gerações. Assim como buscamos aprendizados nas histórias dos que vieram antes, um dia seremos referência para os que virão.
Com o livro impresso, eu e Angelita seguimos com a execução do projeto conforme previsto. Um dos compromissos era a entrega de exemplares em escolas públicas municipais. Assim, agendamos na Escola Municipal José Antônio Júnior, de ensino fundamental. Ao chegarmos, fomos recebidos pela diretora, que nos conduziu à biblioteca e avisou que chamaria alguns alunos. Disse que não perderia a oportunidade de promover um bate-papo com alunos que representassem cada turma, para que depois eles compartilhassem com os colegas.
A pedagoga da escola, com carinho e atenção, explicou que aqueles alunos foram escolhidos por serem os que mais frequentavam a biblioteca e retiravam livros para leitura. Como um presente, teriam sido convidados a participarem da conversa com o autor. Uma iniciativa simples, mas valiosa: reconhecer o hábito da leitura com um momento de escuta e troca.
Fiz uma fala curta, improvisada. Contei como nasceu o projeto, expliquei a proposta do livro, a importância da leitura e da educação. Falei também das angústias dos dias atuais, dos medos que atravessamos e das formas que encontramos para seguir em frente. Reforcei que os verdadeiros autores do livro são os homens privados de liberdade. E que o foco da obra não está nos crimes cometidos, mas em suas histórias de vida, seus percursos, suas rupturas e possibilidades de reconstrução.
Deixamos os exemplares na biblioteca e, ao fim, os alunos começaram a sair. Cada um carregando sua cadeira. Um deles me perguntou se já podia pegar o livro para ler. Alguns ficaram para ajudar a bibliotecária a etiquetar os exemplares. Havia cuidado ao manusear o livro. Interesse. Curiosidade.
Que a literatura continue sendo um canal de aproximação com a realidade. Um espaço de compreensão. Que provoque perguntas e evite respostas prontas. Que inspire, sem romantizar. Que denuncie. E que contribua para que mais pessoas, privadas de liberdade ou não, possam encontrar um caminho possível — porque ainda há céu lá fora.