Logotipo Rádio HED

Redação: (31) 3253-2226

Comercial: (31) 3253-2210

Redação: (31) 3253-2226 - Comercial: (31) 3253-2210

Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Quando a escrita no cárcere encontra a escola

Publicado em 18/04/2025 às 06:00.

O convite foi feito por Angelita Mercês, que atua no Conselho da Comunidade da Comarca de Igarapé, em Minas Gerais, e mora na cidade de São Joaquim de Bicas. Foi por iniciativa dela que se tornou possível o livro Ainda há céu lá fora, uma obra composta por textos de pessoas privadas de liberdade em três unidades prisionais: os presídios São Joaquim de Bicas 1 e Bicas 2, e a Penitenciária Jason Albergaria.

Angelita inscreveu o projeto na Lei Paulo Gustavo e teve a proposta aprovada. O objetivo era que o livro fosse escrito, publicado e distribuído para escolas do município, além de bibliotecas e unidades de saúde. Com isso, o acesso à leitura de textos produzidos dentro do sistema prisional se ampliaria, alcançando educadores, estudantes, profissionais da saúde, da assistência social e leitores em geral.

Fui convidado para que o projeto de escrita que desenvolvemos pelo Tio Flávio Cultural, em parceria com o Conselho da Comunidade, pudesse dar visibilidade às tantas histórias contadas nos projetos voluntários voltados para a educação que realizamos em unidades prisionais. A proposta era que quem lesse o livro pudesse compreender um pouco mais quem são essas pessoas antes do crime: como viveram a infância, qual era sua relação com a família, com a escola, com a comunidade. Refletir, também, sobre o impacto da ausência de uma educação estruturada, e como isso pode contribuir para trajetórias marcadas por vulnerabilidades.

O livro trata, de forma indireta, de questões ligadas à formação de sujeitos. Muitas vezes, responsabilizamos exclusivamente a escola pelo insucesso de um indivíduo, ignorando o papel de outros espaços sociais que também formam, educam e influenciam: o ambiente familiar, os grupos religiosos, o mercado de trabalho, os espaços de lazer, os vizinhos, as lideranças comunitárias. Todos esses cenários interferem na construção de uma pessoa.

Acima de tudo, está a família. O impacto de um ambiente familiar desestruturado, a quebra de vínculos afetivos e o abandono deixam marcas profundas. Em muitos relatos, observamos a ausência paterna como ponto comum, e a sobrecarga das mães que, para sustentar os filhos, precisaram se afastar durante longos períodos. Não foi por negligência, mas por necessidade. Muitas se culpam, mesmo tendo feito o possível. Delegaram os cuidados a terceiros, mas não o amor. Ainda assim, influências externas chegaram, e nem sempre foram positivas.

Esse ponto já permite uma reflexão: a necessidade de diálogo dentro das famílias, a construção de uma escuta mais qualificada, e a presença, mesmo nas ausências inevitáveis. Isso vale para os pais, para as mães, para os avós — muitas vezes responsáveis por netos que ficaram sem referência direta dos pais.

São histórias fragmentadas. Ao tentar compreendê-las, não mudamos o passado, não entregaremos momentos felizes àquelas crianças do passado e nem perdão a pessoas que foram vítimas dos adultos do presente, mas podemos repensar nossas próprias relações familiares, nosso papel como cidadãos e como parte ativa da sociedade. Como contribuímos ou deixamos de contribuir para o ambiente em que vivemos? Como fortalecemos, ou não, as redes que deveriam amparar não só aos que amamos, mas aos que dividem o mundo com a gente?

Costumo citar o título do livro da professora Grazi Mendes: Ancestrais do futuro. O que fazemos hoje tem impacto direto nas próximas gerações. Assim como buscamos aprendizados nas histórias dos que vieram antes, um dia seremos referência para os que virão.

Com o livro impresso, eu e Angelita seguimos com a execução do projeto conforme previsto. Um dos compromissos era a entrega de exemplares em escolas públicas municipais. Assim, agendamos na Escola Municipal José Antônio Júnior, de ensino fundamental. Ao chegarmos, fomos recebidos pela diretora, que nos conduziu à biblioteca e avisou que chamaria alguns alunos. Disse que não perderia a oportunidade de promover um bate-papo com alunos que representassem cada turma, para que depois eles compartilhassem com os colegas.

Foram chegando, aos poucos, grupos de três ou quatro estudantes. Crianças ainda, alguns de estatura bem pequena. Sentaram-se em silêncio, observando. A bibliotecária pediu ajuda para trazer mais bancos e o espaço foi se preenchendo.

A pedagoga da escola, com carinho e atenção, explicou que aqueles alunos foram escolhidos por serem os que mais frequentavam a biblioteca e retiravam livros para leitura. Como um presente, teriam sido convidados a participarem da conversa com o autor. Uma iniciativa simples, mas valiosa: reconhecer o hábito da leitura com um momento de escuta e troca.

Fiz uma fala curta, improvisada. Contei como nasceu o projeto, expliquei a proposta do livro, a importância da leitura e da educação. Falei também das angústias dos dias atuais, dos medos que atravessamos e das formas que encontramos para seguir em frente. Reforcei que os verdadeiros autores do livro são os homens privados de liberdade. E que o foco da obra não está nos crimes cometidos, mas em suas histórias de vida, seus percursos, suas rupturas e possibilidades de reconstrução.

Deixamos os exemplares na biblioteca e, ao fim, os alunos começaram a sair. Cada um carregando sua cadeira. Um deles me perguntou se já podia pegar o livro para ler. Alguns ficaram para ajudar a bibliotecária a etiquetar os exemplares. Havia cuidado ao manusear o livro. Interesse. Curiosidade. 

Um aluno me abordou, me cumprimentando com um “toquinho” de mãos. Ele me deu um abraço rápido e disse: “Quando eu crescer, quero ser assim.” Em muitos casos, vemos alunos sem perspectivas, que não pensam em nada sobre o seu futuro. Eu “brinco” dizendo que, em vez de perguntar a uma criança o que ela quer ser quando crescer, deve-se perguntar o que ela quer ser antes de crescer, pois algumas nem chance de ser criança têm.

Que a literatura continue sendo um canal de aproximação com a realidade. Um espaço de compreensão. Que provoque perguntas e evite respostas prontas. Que inspire, sem romantizar. Que denuncie. E que contribua para que mais pessoas, privadas de liberdade ou não, possam encontrar um caminho possível — porque ainda há céu lá fora.

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por