Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Que isto valha a sua vida

Publicado em 04/08/2023 às 06:00.

Uma historinha que me foi contada por uma professora – sempre elas - quando eu ainda era criança, marcou a minha infância e está bem viva em mim até hoje. Como para as crianças tudo toma uma proporção maior, ao ir falando aquele conto era como se a professora desenhasse as cenas em minha mente.

Eu não vou procurar na internet a história real para que eu possa relatar aqui como ficou registrado na minha memória. E é assim que eu lembro dela falando: um rei muito rico e egoísta tinha uma coleção de cristais, que eram como joias raras. Toda vez que algum criado ia limpá-los, o soberano dava o alerta de que se algum desses pertences preciosos fosse danificado, era com a vida que o servo pagaria.

E não deu outra. Apesar de habilidoso, mas tremendo de medo e temendo pela sua vida, um serviçal começou a passar o pano para tirar a poeira daquelas taças, jarros, pratos. O serviçal suava e suas mãos, mesmo cobertas com luvas brancas, estavam encharcadas. Tudo ia bem, até que uma daquelas nobres peças, sem querer, desliza da mão daquele homem, bate na mesa e vai até o chão, rompendo-se em vários pedacinhos.

Irado, o rei manda que os guardas ceifem a cabeça daquele descuidado servo, que foi avisado da preciosidade que ali estava guardada e não teve a consciência de manter-se alerta para não danificar nenhum daqueles itens. “Homens assim não têm cuidado por não terem noção de que uma joia dessas é mais valiosa do que a existência infame de qualquer servo. Assim, pague com a vida, mesmo que ela não valha nada”, dizia o dono do palácio.

Como a coleção de cristais era imensa, a limpeza era necessária com frequência, para que aquelas joias se mantivessem com brilho. Para isso, uma grande quantidade de homens já havia sido morta por quebrar os cristais do rei.

Eis que chega um novo servo, escolhido dentre os mais habilidosos, para que se dedicasse apenas àquela tarefa. Demonstrando confiança naquilo que se propôs a fazer, o servo disse ao rei que as peças que ali estavam eram muito malcuidadas pelos que o antecederam e que o rei era digno de um tesouro conservado, limpo, para fazer jus ao seu poder, riqueza e sei lá mais o que.

O rei se encantou com aquela conversa. Começou a acreditar que finalmente havia encontrado a pessoa certa para tal tarefa. O novo servo orientou que todos os cristais deveriam ser colocados em cima daquela longa mesa de refeições, mas com todo cuidado, inclusive sobre uma toalha rara de linho deveria cobrir toda e extensão da mesa, preservando ainda mais aquela riqueza.

As servas foram ordenadas a tecerem tal toalha para a mesa, que tinha metros e mais metros de um trabalho manual de dar inveja a outro reino. Toalha pronta, cuidadosamente todos os itens foram sendo tirados do armário e colocados um a um para a limpeza real.

O rei se alegrava, pois tudo o que ele mais prezava estava ali, diante dos seus olhos, para receber os cuidados devidos.

Perante a todos, o rei fez o discurso, dizendo que muitos homens mereceram a morte por não conseguirem enxergar aquela riqueza guardada ali, diante de todos. E agora um novo servo, menos inculto que os demais, daria a atenção que os ricos objetos mereciam. E bradou: “que seja iniciado o trabalho e que nenhum dos guardas ou servos se aproxime daquela vasta mesa, sob pena de serem mortos”.

Dada a ordem, o servo tomou posição em pé, diante daquela mesa. Com olhar enigmático, como se iniciasse um ritual, agarrou aquela toalha de linho que pendia da cabeceira e puxou com toda a sua força, num ato planejado há tempos.

O rei?  A sua majestade ficou rubro, possesso, adoecido de ódio.

Como se tivesse perdido a sua própria vida, o rei gritava: “matem-no, matem-no”. O servo calmamente olhou e disse: “sim, foi para isso que vim aqui, para morrer, poupando a vida de tantos outros que morreriam, sem dúvida, no dia a dia egóico que o hipnotiza. Minha vida vale mais que estas tralhas todas juntas, mas vale tanto quanto cada vida que aqui foi e seria perdida pelo seu efêmero poder”.

Acredito que a história seja bem diferente, mas a cena do homem puxando a mesa repleta de um tesouro frágil, para poupar a vida de tantos outros, ainda reside aqui na minha memória.

Gosto bastante de uma fala do estoicismo, que diz que deveríamos olhar para uma taça, um objeto, uma pessoa e imaginar: isso não é meu, um dia ele vai quebrar ou vai embora. Como não é meu, mas o tenho por perto agora, que o uso seja adequado e que durante aquele tempo em que está comigo, seja fruto de boas lembranças.

Como todos esses contos acabam com uma “moral da história”, não vou abrir mão deste recurso. Uma frase de para-choque de caminhão poderia dizer o que eu estou tratando aqui: “dedique tempo ao que de fato é o seu tesouro”. Mas que isso valha a sua vida e não compulsoriamente a dos outros.

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