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Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Todos somos a aldeia uns dos outros

Publicado em 21/11/2025 às 06:00.

O trem que me levaria até a cidade de Governador Valadares estava gelado por dentro, em contraste absoluto com o calor que fazia do lado de fora. Sentei-me perto da janela e fiquei observando os passageiros que embarcavam e desembarcavam, criando um movimento quase coreografado de malas, conversas breves, expectativas e despedidas rápidas, enquanto boa parte seguia viagem em silêncio, como eu, apenas testemunhando o fluxo das paisagens e estações que se alternavam pela janela.

Na poltrona da frente, no lado oposto ao meu, um senhor conversava sem parar com uma jovem senhora que havia conhecido ali. Ele contou que era uma pessoa introvertida, o que me causou estranheza, pois desde que entrou não houve um segundo de silêncio que viesse dele. 

Falou da cirurgia que havia feito recentemente, demonstrou surpresa ao descobrir que os assentos do vagão econômico não reclinavam, comentou as dificuldades do pós-operatório e tentou, de alguma forma, justificar aquele tanto de conversa que não combinava muito com a ideia que tinha de si mesmo. Talvez a viagem até o Espírito Santo o deixasse ansioso, talvez tivesse encontrado naquele pequeno trecho de convivência alguém disposto a escutá-lo ou talvez carregasse dentro de si um acúmulo de pensamentos que, de vez em quando, buscavam vazão.

Antes das onze, ele abriu uma vasilha cuidadosamente embalada e começou a almoçar como se estivesse em casa, sem cerimônia, comendo arroz, frango, beterraba e algumas outras coisas que completavam seu prato bem preparado. Explicou que havia saído de casa muito cedo e não tinha tomado café da manhã como gostaria. A senhora ao lado apenas concordou, como quem reconhece que as urgências do cotidiano moldam nossos hábitos mais básicos.

O jovem responsável pelo carrinho de lanches passou pelo corredor, oferecendo salgados e refrigerantes com uma simpatia tímida, e lamentei não ter dinheiro em espécie para comprar nada, já que o sinal de internet parecia incapaz de nos alcançar durante boa parte da viagem. Ele percebeu minha tentativa frustrada e apenas sorriu com um gesto compreensivo, como quem sabe que certas situações fazem parte da rotina de quem trabalha sobre trilhos. Antes de sair do meu vagão, a sorte: a máquina de cartão de crédito havia conseguido sinal, e ele ainda tinha o último prato de omelete à venda.

No vagão havia muitas crianças acompanhadas por suas mães. Algumas corriam pelo corredor estreito, fazendo daquele espaço limitado uma espécie de parque improvisado; outras mantinham-se agarradas às pernas dos responsáveis, buscando ali um pouco mais de segurança, enquanto os funcionários tentavam, com firmeza e cuidado, garantir que as crianças não circulassem desacompanhadas, para assegurar a segurança de todos.

Em determinado momento, uma mãe aproximou-se de mim com um olhar aflito. Ela disse que precisava ir até três vagões adiante para buscar duas malas e perguntou se poderia deixar o filho na poltrona ao lado da minha por alguns minutos. Embora meu primeiro impulso tenha sido o da desconfiança, talvez por influência de tantas séries e notícias que nos atravessam, percebi rapidamente as câmeras espalhadas pelo vagão, a exaustão estampada no rosto daquela mulher e a confiança involuntária que ela depositava em mim ao fazer aquele pedido. Concordei.

O menino estava sentado segurando com força sua mochilinha, acompanhando com os olhos cada passo da mãe até que ela desapareceu na curva entre os vagões. Era tímido e não parecia muito disposto a conversar, então apenas lhe pedi que permanecesse quieto para não se desequilibrar nas curvas do percurso. Ele me entendeu. 

Quando a mãe voltou, arrastando duas malas que eram maiores do que o próprio filho, chamou-o pelo nome e orientou que colocasse a mochila nas costas. Ele se levantou imediatamente e, antes de seguir, olhou para mim com um misto de timidez e gratidão. Não disse nenhuma palavra, mas naquele olhar havia um obrigado silencioso e uma espécie de despedida rápida, como as que se dão entre desconhecidos que se encontram por acaso.

Continuei observando as crianças que passavam pelo corredor. Algumas calçavam chinelinhos que batiam ritmicamente no chão, outras usavam tênis que acendiam ao pisar, e todas carregavam algo de muito particular: ora entusiasmo, ora cansaço, e uma inocência que parecia resistir ao barulho do trem e às conversas dispersas dos adultos.

Ao observá-las, comecei a pensar no futuro dessas crianças e na responsabilidade coletiva que temos sobre elas. Foi então que me vieram à mente dois provérbios africanos que sempre me atravessaram. O primeiro diz que a criança que não é acolhida (abraçada) pela aldeia queimará a aldeia para sentir seu calor. Esse provérbio não fala de violência ou rebeldia, mas da necessidade profunda de pertencimento e de cuidado.

Uma criança ignorada, negligenciada ou abandonada acaba buscando reconhecimento de outras formas, nem sempre benéficas, porque o desejo por afeto e acolhida é uma urgência humana. O segundo provérbio afirma que é preciso uma aldeia para educar uma criança, expressão que reforça a ideia de que nenhuma educação acontece de maneira isolada e de que a construção do caráter de alguém depende de múltiplos encontros, ambientes e influências. Alguns pensadores, porém, invertendo essa lógica, sugerem que é a presença da criança que convoca a aldeia, pois ela nos lembra de nossas responsabilidades e nos devolve a consciência sobre a necessidade de proteger, orientar e preparar as novas gerações.

Enquanto o trem seguia viagem, lembrei-me também do trabalho voluntário que realizo em unidades prisionais, onde frequentemente propomos aos custodiados que escrevam sobre a própria infância. Esse exercício, que parece simples, costuma revelar muito sobre os caminhos que eles percorreram antes de chegar ali. Muitos relatam a ausência paterna como lembrança central. Outros contam sobre os anos que passaram na escola até o momento em que, por diferentes motivos, deixaram de frequentá-la, seja para cuidar dos irmãos, ajudar no sustento da casa, acompanhar influências problemáticas da rua ou simplesmente porque a escola já não fazia sentido para eles. Em alguns casos, a família fragilizada não conseguiu garantir o direito à proteção e ao estudo; em outros, a rebeldia típica da adolescência afastou esses meninos das boas referências; e, em outros, a escola não conseguiu dialogar com suas realidades, ficando distante dos contextos que moldavam suas vidas.

Ao observar aquelas crianças atravessando o corredor do trem com seus passos ainda inseguros, percebi o quanto a aldeia que falhou com tantos adultos privados de liberdade começa exatamente nesse ponto: no cuidado cotidiano, nas pequenas orientações, no olhar atento, na possibilidade de um ambiente que acolhe antes que o mundo endureça demais. Talvez a responsabilidade que temos sobre as crianças seja justamente essa: garantir que encontrem calor antes de procurar o fogo, garantir que cresçam sabendo que alguém as viu, que alguém se importou, que alguém ofereceu, ainda que por um instante, a sensação de pertencimento.

O trem seguiu adiante, passando por pontes, córregos e pequenas casas isoladas, e ali, naquele vagão cheio de histórias e movimentos, tive a convicção de que, de alguma forma, todos nós somos aldeia uns dos outros, cruzando vidas que se tocam apenas por alguns minutos, mas que, ainda assim, deixam marcas que podem acompanhar alguém por muito tempo.

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