Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Transversais

Publicado em 25/03/2022 às 06:00.

Em meio à pandemia recebi um convite do ator e diretor teatral Fernando Bustamante para participar de uma série de reuniões semanais que apresentariam alguns temas relacionados às minorias e que eles, atores, cantores e dançarinos da Cyntilante Produções, fariam pequenos vídeos cantando músicas que traziam abordagens sobre estes grupos.

O Fernando precisava de pessoas que viviam diretamente questões relevantes dessas minorias para que cada música e vídeo criados tivessem um olhar de quem conhece aquelas realidades.

Foi ali que tive a oportunidade de conhecer muita gente, ouvir muitas histórias e aprender demais. Disse a eles que parecia uma pós-graduação que estávamos todos fazendo, juntos. Neste grupo tinha o Dan Kaio Lemos, que trazia sua experiência sobre o movimento LGBTQUIA+ e uma série de referências acadêmicas bem legais, pois ele é graduado em Humanidades e em Antropologia, além de ser pesquisador do assunto e um incansável militante.

Kaio é um homem trans.

Os temas que seriam abordados nos vídeos se referiam às mulheres, negros, idosos, pessoas com deficiência, LGBTs, dentre outros grupos. Eu estava ali para contar a minha experiência com o público idoso, mas a "coincidência" foi que o convite para integrar o grupo de discussão veio justamente no mesmo momento em que comecei a fazer um trabalho voluntário numa unidade prisional, em Minas Gerais, que  recebe pessoas LGBTs em privação de liberdade vindas de diversos lugares do estado.

O que o Kaio falava ia ao encontro daquilo que eu fui percebendo em algumas pessoas em cumprimento de pena. Uma que a mãe a colocou para fora de casa quando descobriu que o filho era homossexual, reduzindo suas roupas e poucos pertences a um saco preto de lixo atirado pela janela, quando esta pessoa tinha 12 anos de idade. Uma outra que a mãe sempre mandava cartas finalizando que a amava mais do que tudo nessa vida, outra que a família aceita a orientação sexual, mas não deixa de chamá-la pelo nome de batismo, ocultando o seu nome social.

Há travestis que são aceitas pelas famílias, há outras que nem contato com os familiares têm mais. Algumas foram para a prostituição, outras buscam um lugar no mercado, ambas dando a cara a tapas para lidarem com os diversos preconceitos.

Conheci muitas pessoas trans, pessoalmente ou através das mídias, que não suportaram o desprezo social e se mataram. E conheço outras tantas que lutam para mudar a mentalidade desta nossa sociedade.

Em Minas Gerais temos muitas pessoas e instituições, como a Walkíria la Roche e o coletivo Mães pela Liberdade, para citar um exemplo de cada, que são vozes que se levantam para defender pessoas que buscam o seu direito sagrado e universal à vida. Sim, elas são mortas por serem quem são, como foi a Dandara, em 2017, no Ceará, ou tantas outras todos os dias, já que o Brasil é o país que mais mata travestis e pessoas trans no mundo.

Talvez seja muito difícil para alguns entenderem isto: o amor e a dor dos pais misturam-se com o medo do sofrimento daqueles que amam.

Então, desarmado de qualquer julgamento, livre de qualquer amarra, aconselho que você assista ao documentário “Transversais”, que chegou recentemente à Netflix.

Confesso que eu chorava a cada história apresentada. Minha vontade era a de abraçar os pais de cada um ali, por terem conseguido transformar sua dor em luta, mas, mais que isso, por conseguirem nos ensinar o amor de maneira tão fluida e verdadeira.

A dor deles é bem semelhante à dor de qualquer um de nós, mas em contextos bem diferentes. Todos queremos ser felizes, viver, sermos reconhecidos pelo que somos, termos nossos empregos, honrarmos nossas famílias.

E é isto que nos anima, na fala de uma das mães, quando afirma que num momento quando tudo parece desabar e todos terem sumido de perto, até mesmo pessoas da família, chega uma mensagem de um movimento que a faz entender que há muito mais gente vivendo o que ela vive e muitas estão dispostas a se darem as mãos.

Érika, uma das protagonistas do documentário Transversais, comemora ser a primeira travesti a assumir a direção de uma escola pública, mas lamenta ao mesmo tempo por ter que comemorar isso, que deveria ser muito mais comum do que é.

Que o respeito e o amor sejam mais constantes em filmes das plataformas digitais e na realidade social.

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