Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Um olhar perdido pela janela

Publicado em 23/02/2024 às 06:00.

Neste dia eu não acordei cedo. Ouvi as notícias na rádio ainda na minha cama e, depois, fui fazer minha higiene no banheiro e preparar meu café. Um café quentinho pela manhã é como um “bom dia” desejado pelo universo. Pode parecer poético, mas é justamente assim.

Coloquei a água para ferver e fui à janela da frente do apartamento, de um prédio de dezenove andares, num bairro da zona sul da capital mineira. Aquela janela do décimo quinto andar revela uma chuva fina de pós-carnaval, numa avenida movimentada, com prédios residenciais e alguns comércios timidamente espalhados em sua extensão. Algumas lojas estão para locação e outras estão fechadas. 

Diante de uma porta de aço, daquelas de correr verticalmente, é que consigo avistar um corpo em descanso, debaixo de uma coberta de lã, daquelas distribuídas às pessoas em situação de rua. Embaixo do corpo, só uma camada de papelão. Escondidas atrás de um vaso, que pareava com a sua cabeça, estavam uma mochila e uma garrafa d’água. 

Aquele ponto comercial, que até antes do carnaval estava em desuso, voltaria a abrigar algum negócio, num ponto difícil, sem tradição mercantil, mas que representava a esperança de algum investidor.

Porta paralela aberta, dois homens observavam aquele corpo, que dormia sem ter noção que outros o aguardavam. Diante do barulho do entra e sai no futuro estabelecimento, por aqueles que estavam ali para arrumar o ambiente para que em breve fosse aberto ao público, o jovem desperta no susto, dá um pulo e coloca-se de pés no chão. Calçava meias vermelhas e tinha um par de chinelos que serviam como travesseiro. 

De onde eu assistia, não consegui ver se houve alguma comunicação entre eles. Hostilidade, ao menos, não notei. O homem acordou, fez uma dobra na manta e a sacudiu, reduzindo-a depois a um pequeno quadrado. Calçou os chinelos, pegou alguns sacos plásticos e colocou numa lixeira do prédio diante de si. Voltou, pegou a mochila e jogou-a nas costas, a manta foi pra debaixo de um dos braços e a garrafinha com água numa das mãos. Dali ele foi caminhando, lentamente, para um destino que eu não pude acompanhar. 

Da minha janela, vejo parte da vida transcorrer, mas, assim como seu formato quadrado, a própria janela limita meu olhar. Eu próprio sou o meu limite.

Voltei para dentro de casa e, enquanto passava meu café pelo coador, comecei a pensar no tanto de histórias que já ouvi, de pessoas em situação de rua, pelos motivos diversos que as levaram para ali.

Mas, antes disso, senti um aperto no peito. Eu nunca vou conseguir entender o que é dormir na rua, sendo observado por olhos estranhos, monitorado pelas câmeras dos prédios, o que é, para boa parte deles, uma defesa diante da crueldade de alguns.

Eu não sei o que é ter que pedir para usar um banheiro num bar, num posto de gasolina ou num equipamento público, ficar sem tomar banho por dias, não ter amigos com quem eu possa chorar minhas dores. Não sei o que é acordar sem ter um centavo no bolso, por mais que a boca alheia diga que de fome “esse povo não morre”.

Um dia, um jovem me disse que a maior preocupação dele ao dormir nas ruas era se ele acordaria e o que ele comeria. As palavras dele ecoam na minha mente até hoje: a gente sente dor física da fome.

Este rapaz tinha sido tirado do convívio com a mãe, por ela ser uma paciente psiquiátrica e não ter dado conta de cuidar dos seis filhos. Boa parte deles foi para um abrigo e este jovem, ainda com 8 anos, experimentou mais uma noite sem a mãe, logo agora que ela tinha voltado do hospital e estava com eles, um grupo do conselho tutelar veio e os privou do convívio materno, após denúncias de vizinhos por suposta negligência da mãe.

Chorando muito, ele foi junto a um dos irmãos para uma casa de acolhimento. Dias depois ele fugiu, pois não conseguia comer e nem dormir, pensando que a mãe dele não teria ninguém em casa para dar-lhe o que comer, como ele e os irmãos faziam ao cuidar dela.

Nessas idas e vindas nos abrigos, intercaladas com as fugas para voltar para casa, a mãe morre quando era ainda um adolescente. A partir daí que ele resolveu ganhar a rua. 

“Mas tem os albergues da prefeitura, eles não vão porque não gostam de regras”, “mas o menino não tem nem pai e nem mãe e vai para um abrigo, onde tem comida e cama e ainda foge de lá? Eles não querem é nada com a dureza”, dizem uns que do alto de um prédio, pelo quadrado das suas janelas, enquadram todas as histórias num só molde.

A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie publicou um livro chamado “O perigo de uma história única”, em que ela cita como a preguiça mental e cultural nos conduzem a pensar que as pessoas são reduzidas a uma única história, nos tirando a saborosa aventura de entender que somos individualmente diversos.

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