Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Violência doméstica dói em todos nós

Publicado em 11/03/2022 às 06:00.

Talvez uma distração tenha me levado a acessar aquele áudio, numa rede social em que eu navegava, de uma criança ligando para a polícia para denunciar o pai, que estava naquele momento violentando a sua mãe na frente dos seus dois irmãos.

Geralmente evito áudios e notícias desse tipo, ainda mais envolvendo crianças. Realmente não tenho saúde emocional para tanto. Mas um clique distraído que dei já foi suficiente para começar a ouvir a atendente do Centro Integrado de Ocorrências e Segurança Pública (Ciosp) de Cuiabá começar a falar.

Ela inicia com a mensagem padrão: “Ciosp emergência”, ao passo que a voz de uma criança ecoa lá do outro lado, numa fala rápida e decidida: “meu pai está agredindo minha mãe”.

A atendente pergunta friamente o endereço, o menino responde e ela já interpela: “você não está passando trote não, né?”. Não sei nada do treinamento dado a estes profissionais e, às vezes, para poder ajudar a quem liga e para preservar a saúde mental de quem atende, deve ser necessário ter um distanciamento emocional do caso. Acredito que seja assim.

Foi quando o menino respondeu, chorando: “eu não tô passando trote, por favor me ajuda”. Neste momento eu já comecei a chorar, arrependido de ter dado início àquele áudio e, em seguida, comecei a imaginar a cena, da iniciativa de uma criança de 11 anos ligando para quem ela mais confia, naquele momento, que poderia ajudá-la.

A atendente fala que foi registrada a ocorrência, que era só aguardar. Aos prantos, o menino diz: “vou ficar aqui na frente esperando”.

Este caso chegou em minhas redes sociais nesta semana. Fui averiguar e ele aconteceu no mês de dezembro de 2019, no estado do Mato Grosso.

Ao chegarem ao local, os policiais encontram a mãe deitada na cama, com muitos ferimentos, uma “arma branca” no chão e as três crianças atrás do sofá.

Confesso que fiquei com a fala da criança na minha cabeça, remoendo, imaginando a dor daquela mulher, naquela situação, mas pensando também na perspectiva daquelas crianças, que tão cedo acompanham atos de violência, inclusive física, contra a própria mãe.

Coincidentemente, esta é a semana em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, no dia 8 de março, mesmo dia em que eu perdi, há 13 anos, o meu pai, vitimado por um câncer, uma pessoa que nos deixou com lembranças felizes e um amor muito grande por todos nós, inclusive pela minha mãe, que me lembrava da data, dizendo-se muito triste naquele dia.

Foi nessa semana também que fui ao Fórum de Belo Horizonte entregar a dois juízes que considero muito o livro Inferno Amarelo, escrito pelo músico Sander Mecca, com uma apresentação escrita por mim.

Deixei um exemplar na Vara de Execuções Penais e subi ao terceiro andar, na Vara da Família e Violência Doméstica. Enquanto esperava na fila para entregar o livro na secretaria, ouvia a conversa de duas mulheres, uma delas servidora do fórum.

Descobri que estava na fila errada e perguntei àquela servidora, que estava no corredor, onde encontrava o Dr. Marcelo de Paula, juiz que eu procurava. Mas, antes disso, a parabenizei por sua fala tão humana, simples e bem acolhedora com a outra senhora que tinha passado por ali momentos antes.

Ela então me contou que namorou, casou, engravidou e quando o filho tinha 11 meses o marido simplesmente a largou. Ela tinha opções: se lamentar para vida toda, se culpar, correr atrás dele ou levantar a cabeça e caminhar.

Aquela mulher, mãe, me disse que nunca procurou o marido e que o filho, maior de idade agora, teve o afeto que precisava na sua casa mesmo e se tornou um grande homem, sem a interferência do pai.

Perguntei se ela sofreu e a resposta foi: lógico, mas segui.

Quantas e quantas mulheres são vítimas de abusos? Quantas se prendem a uma relação que as faz acreditar que são piores que os seus maridos? Quantas acreditam, após um ato violento, que aquele homem agiu por impulso, de novo? E quantas vivem aprisionadas até hoje, por culpa, vergonha, medo, falta de perspectiva, dependência ou ameaça? É importante entender que amar não é ter posse, muito pelo contrário.

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