As lições do caos: repensar as escolhas e práticas de consumo mostra-se urgente

Patrícia Santos Dumont
pdumont@hojeemdia.com.br
31/05/2018 às 11:01.
Atualizado em 03/11/2021 às 03:21
 (Vila João de Barro/Divulgação)

(Vila João de Barro/Divulgação)

Falta de combustível nos postos, prateleiras vazias em supermercados e sacolões. Logo aos primeiros sinais do efeito cascata provocado pela greve dos caminhoneiros, muita gente achou mais fácil pensar no pior. O foco na escassez levou a filas imensas onde nem havia gasolina, disputas corporais por produtos, roubos e à corrida insana para estocar alimentos. Mas será que essas são as melhores escolhas em meio ao caos? O que se pode aprender em tempos assim que permitiria, quem sabe, um futuro diferente?

Um texto que viralizou nas redes sociais nos últimos dias propôs a reflexão. Abordou a importância de repensar o atual modelo de vida e de construir estratégias mais conscientes e sustentáveis em relação a nosso atual padrão de consumo. 

24% da produção mundial de inseticida é consumida no cultivo de algodão, principal matéria-prima da indústria têxtil

“Dependemos muito dos combustíveis fósseis. Dependemos muito de meios de transporte de longa distância. Dependemos muito das coisas erradas, que podem até ser úteis atualmente, mas que irão nos destruir no futuro. Que esses dias apocalípticos nos sirvam de inspiração para alterar hábitos e rotinas destrutivas”, compartilhou a escritora carioca Lorena Ventura no Facebook (leia texto completo no fim da matéria).

Para ela, a hora de mudar é agora. “Tudo o que se constrói aos poucos fica mais fácil de ser modificado. Primeiro, identificamos o que é importante ser revisto no âmbito individual, na nossa casa, na nossa vida. Depois, partimos para o coletivo”, pondera. 

15 milhões de toneladas de comida são descartadas pelo brasileiro todo ano, segundo a Organização da ONU para Agricultura e Alimentação (FAO)

Secretário-executivo da Rede Terra Viva – coletivo em BH e região metropolitana que incentiva e qualifica a produção agroecológica e a preservação do meio ambiente –, Fernando Rangel aponta a economia solidária como ponto de partida para uma nova consciência. “Não é moda, mas necessidade. Em momentos como esse temos que enxergar o lado bom de tudo e jogar luz sobre a importância da autonomia alimentar, que deve acontecer em nível local, regional, territorial”, diz.

A “luz no fim do túnel”, acrescenta, é a não dependência da cadeia de abastecimento sustentada pelo petróleo. Passa pelo incentivo e fortalecimento do cultivo em bairros e quintais. “Hortas comunitárias como a do Ribeiro de Abreu abastecem a periferia, que, normalmente, é onde há mais reflexos da crise de desabastecimento”, exemplifica.

, Modefica une conteúdo e educação e sugere a construção de moda consciente

Armazém natural

Sócia-proprietária da Pachamama, empresa em BH de cosméticos femininos ecológicos, e uma das fundadoras da Vila João de Barro – armazém de alimentos saudáveis, orgânicos e naturais em Nova Lima –, Carol Neves engrossa o coro de quem vê urgência numa nova sociedade. 

No espaço do bairro Vila da Serra, no mesmo terreno onde ela mora com a família, são vendidos produtos sustentáveis, maioria a granel. O objetivo é evitar o uso de embalagens poluentes. 

“Para mim, não fazia o menor sentido consumir um produto limpo, orgânico, que não prejudicou o meio ambiente nesse sentido, mas que era vendido em bandejinhas de isopor e plástico. Resolvemos, então, criar um espaço onde pudéssemos encontrar tudo junto e ainda dividir com os amigos e com quem mais gostamos”, conta. 

A Vila João de Barro funciona às segundas e terças-feiras, das 8h às 18h, e aos sábados das 8h às 14h. 

As feiras da Terra Viva acontecem às terças-feiras e sábados, das 9h às 13h, no bairro Horto; cerca de cem produtores e 300 famílias compõem a rede, que produz e comercializa desde hortaliças a produtos de limpeza sustentáveis

Vila João de Barro/Divulgação

Armazém orgânico em Nova Lima vende produtos a granel e dispensa descartáveis; cliente pode levar o próprio recipiente ou adquirir vasilhames de vidro, tecido ou papel, que reduzem geração de resíduos 

Ausência de atravessador diminui desperdício de alimento

Do campo à mesa. É essa a experiência a que se propõe a BeGreen, maior fazenda urbana da América Latina, instalada no Boulevard Shopping, região Leste de Belo Horizonte. No espaço são cultivados e comercializados, por mês, cerca de 50 mil pés de alface e outras hortaliças. A entrega dos vegetais dispensa atravessadores.

O objetivo, explica o CEO da empresa, Giuliano Bittencourt, é reforçar a responsabilidade de cada um na sustentabilidade do planeta e incentivar o consumo consciente. “Tudo o que comercializamos é produzido na estufa de BH. Utilizamos 90% menos água do que se usa na agricultura convencional e economizamos no transporte feito com veículos”, explica, mencionando que parte das entregas a restaurantes e supermercados da capital é realizada de bicicleta. BeGreen/Divulgação

BeGreen Boulevard encurta caminho até o consumidor; espaço produz 50 mil pés de alface por mês

Adubadas por meio de um sistema que utiliza fezes e xixi de peixes, as verduras são vendidas em pequenos buquês que podem ser cultivados em casa nas próprias embalagens. A ideia é que o consumo seja imediato ou que se evite perdas.

Sem desperdício

Ao contrário do que ocorre nos cultivos tradicionais, a BeGreen também não transporta as hortaliças do campo até os grandes centros urbanos, eliminando perdas que acontecem no caminho. Mais da metade dos alimentos produzidos no Brasil e que vão parar no lixo se perdem no manuseio e transporte. Outros 30% perecem nas centrais de abastecimento e 10% nas gôndolas de supermercados. 

A BeGreen comercializa as hortaliças na Casa Horta, espaço vizinho à estufa onde também são vendidos outros produtos agroecológicos. 

Em São Paulo, o projeto Gaveta nasceu para difundir o conceito de clothing swap ou troca de roupa; ideia é incentivar o reúso

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Mini entrevista:

Lorena Ventura - escritora, facilitadora de oficinas de cosméticos naturais e autora do texto (leia no fim da entrevista) que viralizou na internet

A mudança de consciência que você propõe parece algo ainda muito distante do brasileiro. Como explicar a viralização do seu texto?
As pessoas estão cansadas da forma como as coisas têm caminhado, estão em busca de transformação. Algumas enxergam essa possibilidade, outras querem, mas não sabem como. O ponto de partida é a mudança de hábitos e de crenças. É possível tornar a vida menos burocrática. 

Por onde começar?
Tudo começa na nossa mente. Primeiro, enxergamos a transformação em um nível individual, depois, no coletivo. Existem diversas formas de fazer isso, por meio da alimentação, do consumo, da fabricação dos próprios cosméticos. Ninguém precisa ser radical e virar vegetariano da noite para o dia, por exemplo. Mudar um estilo de vida fica mais fácil quanto se faz aos poucos.

Que grande lição essa greve nos deixa?
Ficamos repetitivos nesse discurso político de que o país não funciona mais, mas é hora de sermos práticos. Por que não mudar o nosso olhar sobre as coisas? Por que não enxergar novas possibilidades de consumo, novas fontes de geração de energia? Devemos mesmo confiar nosso futuro a um sistema que se mostrou ineficiente agora? É hora de despertar para a autonomia, de ser menos dependentes das grandes empresas. Precisamos estreitar o contato com a agricultura orgânica, familiar, e nos educar melhor sobre produção de lixo. Temos potencial para isso.

"O que aprender com a paralisação dos caminhoneiros?

Estamos passando por um "treinamento de apocalipse". Sem combustível nos postos, poucas frutas e legumes, quase nada de verduras, faltam itens nos mercados... Parece cena de filme, mas não é.

E dessa vez, nós temos sorte (!!!), é por conta de uma paralisação de caminhoneiros que daqui a alguns dias estará solucionada com os acordos que estão sendo feitos com o governo. 

No futuro, se continuarmos fazendo as coisas da mesma forma, será por falta real de recursos. Falta, aliás, que já existe constantemente para pelo menos 1 bilhão de pessoas pelo mundo. 

Tudo isso me faz ver que nós ainda dependemos MUITO dos combustíveis fósseis. Dependemos MUITO de meios de transporte de longa distância. Dependemos MUITO das coisas erradas, daquelas coisas que podem até ser úteis atualmente, mas que irão nos destruir no futuro.

Que esses dias apocalípticos nos sirvam de inspiração para alterar hábitos e rotinas destrutivas. 

Menos carros nas ruas, mais bicicletas.

Menos consumo de alimentos que vêm de todos os cantos do mundo, mais produção local. 

Mais hortas urbanas nos bairros das grandes (e pequenas) cidades.

Mais fontes de energia alternativas.

Mais respeito por quem produz e transporta aquilo que necessitamos - independente da distância. 

Mais pessoas interessadas em promover mudanças em suas vidas pessoais.

Não vai adiantar estocar comida quando recursos como o petróleo estiverem escassos e causando o caos completo numa sociedade que se sustenta em bases frágeis.

Mas adianta aprender a plantar, se organizar e montar uma horta em casa ou no bairro, compostar as sobras de alimentos. Adianta buscar os pequenos agricultores que moram mais próximo de você.

Adianta buscar novas fontes de energia. Adianta aprender a reduzir a necessidade por itens que demandam gasto de energia ou combustíveis fósseis.

Adianta aprender sobre veganismo, minimalismo, sustentabilidade, horta urbana, empreendedorismo, viver (mais e melhor) com menos. 

Adianta mudar. 

Primeiro sozinho, de dentro para fora. Depois unindo-se a outros que também estão promovendo mudanças nas estruturas da sociedade.

A estrutura primeira de toda civilização é o indivíduo. Mudando o indivíduo, muda-se a sociedade. E pouco a pouco começamos a ver as mudanças individuais reverberando no mundo ao nosso redor. 

Novas leis, novas iniciativas, novas formas de ver e viver a vida.

Junte-se ao novo.

Mas por onde começar? Por onde você quiser. Todo despertar natural começa com apenas uma transformação.

Você quer reduzir a sua produção de lixo? Parar de comer animais? Diminuir o seu vício em consumo? Emagrecer com saúde? Deixar de depender dos mercados e grandes marcas para comer, se cuidar e se vestir? Defender uma causa? 

Você escolhe por onde começar. 

O mundo está acabando, é sério. Só que tudo o que acaba dá a oportunidade de início a alguma coisa. Estamos vendo o nascer de um novo mundo - e o colapso de um mundo antigo.

Por isso, tome as providências necessárias para acessar cada vez mais a realidade do novo mundo e depender cada vez menos do velho. É mais fácil e bem mais barato do que você pensa. 

Quem continuar a depender do velho mundo, vai acabar junto com ele.

E a paralisação dos caminhoneiros é só um aviso para quem quiser entender as coisas com os olhos da transformação: não coloque a sua vida nas mãos de um sistema falido. 

Acorde e co-crie um novo sistema mais justo, limpo e sustentável!" #gogreen

por Lorena Ventura

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