Expressão sem corte: vetada por lei, cirurgia mutiladora é danosa ao animal

Patrícia Santos Dumont
pdumont@hojeemdia.com.br
04/05/2018 às 10:14.
Atualizado em 03/11/2021 às 02:39
 (Riva Moreira)

(Riva Moreira)

Muito comuns até o início da década de 2000, as cirurgias de corte de cauda e de orelhas, em cães, e de extração das unhas, nos gatos, têm se tornado cada vez menos frequentes. Consideradas mutiladoras, já que são feitas com finalidade meramente estética, já foram proibidas por decreto federal que completa, neste ano, dez anos.

Além de interferir na expressão natural dos bichos, caudectomia, conchectomia e onicectomia, como são, respectivamente, denominadas, podem deixar sequelas nos pets, alertam médicos veterinários.

Presidente da Comissão Nacional de Bem-Estar Animal do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), Cassio Ricardo Ribeiro reforça que são proibidas as intervenções que não têm indicação profissional. 

“Ao entender que são procedimentos desnecessários para o animal, cai por terra qualquer tentativa de justificá-los. O bicho precisa expressar suas características naturais, como balançar a cauda, arranhar e latir”, comenta o veterinário, mencionando, ainda, a cordectomia ou remoção das cordas vocais – um dos procedimentos vetados no decreto do CFMV.

Expressão natural

Cadela da raça schnauzer (uma das mais populares quando o assunto é o encurtamento do rabo), Nina, de 4 anos, não foi impedida de expressar alegria nem medo, por exemplo, ao balançar a cauda. Tutora do animal, a arquiteta Maria Carolina Couri, de 33 anos, conta que a adotou aos 8 meses e optou por não fazer a cirurgia. 

“O rabo é um componente importante para o cão, pois é por ele que se comunicam e expressam sentimentos. Uma vez, descobri que a Nina não estava se sentindo bem porque começou a andar com o rabinho baixo”, lembra a arquiteta, que teve outro cão da mesma raça, cuja cauda foi cortada. Arquivo Pessoal

“Mãe” de Nina, schnauzer que não foi submetida à cirurgia de encurtamento da cauda, Carolina já teve Otto, da mesma raça, que passou pelo procedimento cirúrgico

A designer gráfico Érica Maldonado Galassi, de 28 anos, compartilha da mesma percepção ao observar o comportamento dos cães que tem em casa. “É visível a diferença entre o Chico (mestiço de sheepdog e schnauzer), os vira-latas e a poodle, que quase não têm rabo. Quando estão felizes, chacoalham desesperadamente os rabos; com medo, colocam-nos entre as patas. Já com a Belinha (poodle) só percebemos alguma demonstração de medo quando ela fica encolhida”, detalha Érica. 

Adestramento

A dica do veterinário Cassio Ribeiro para tutores ou para quem ainda planeja ter um pet em casa é para que procurem antes se informar sobre a raça e a conduta do animal. “O mais importante é conversar com um criador ou veterinário para saber se as condutas do cachorro ou do gato são compatíveis com aquilo que ele deseja”, reforça.

Em algumas situações, entretanto, um bom adestramento pode ser o caminho ideal, ensina o presidente do Conselho Regional de Medicina Veterinária de Minas Gerais (CRMV-MG), Bruno Divino Rocha. “O problema de um latido excessivo, por exemplo, é contornável com treinamento, assim como o de um gato que arranha os móveis. Cirurgias mutiladoras são facilmente substituídas por treinamentos comportamentais”, argumenta o profissional. 

Presidente do Clube Mineiro de Rottweiller (RottMinas), Márcio da Silva Pinto é dono de nove animais, incluindo um cuja idade é exatamente a mesma da resolução publicada pelo CFMV. Assim como os demais cães, Jecki, de 10 anos, teve a cauda mantida – decisão pessoal adotada por Márcio, e compartilhada por outros criadores da raça. 

“A mudança de comportamento é nítida. Fora a manifestação de alegria, que fica prejudicada, tem a questão do equilíbrio. Com certeza faz diferença na vida do animal”, afirma o criador. 

Segundo ele, que também é vice-presidente do Kennel Club da Grande Belo Horizonte, a proibição de cirurgias mutiladoras em cães e gatos é realidade há mais tempo em outros países, sobretudo na Europa. “Já deixei de vender filhotes para pessoas que desejavam ter um cachorro sem rabo cortado”, enfatiza. 

Dobermann e dog alemão eram duas das raças mais submetidas à cirurgia de corte de orelhas; procedimento integra lista de proibidos pelo CFMV

Lucas PratesÉrica Maldonado percebe a diferença de comportamento entre Chico - que teve a cauda mantida - e os demais cães, que passaram pela cirurgia: "consigo perceber com facilidade quando está feliz, triste ou com medo"

Intervenções podem gerar dor permanente e levar à morte

Quando realizadas com finalidade puramente estética, as cirurgias consideradas mutiladoras prejudicam não só a expressão do comportamento natural dos animais como podem ocasionar sequelas graves e dolorosas por toda a vida, levando, inclusive, à morte.

Prolongamento da coluna vertebral, a cauda, por exemplo, quando retirada ou encurtada após três dias de nascimento do cão pode provocar sensibilidade e dor. “É uma parte do corpo extremamente sensível, cheia de terminações nervosas”, justifica o médico veterinário Cassio Ricardo Ribeiro, presidente da Comissão de Bem-Estar Animal do CFMV. 

Ele explica, ainda, que até os três meses, fase em que os donos buscavam a cirurgia, o fígado do animal não está completamente formado e, portanto, não metaboliza perfeitamente medicamentos usados para evitar dor ou antiinflamatórios.

Outro procedimento bastante arriscado é a remoção das cordas vocais. De acordo com o presidente do CRMV-MG, Bruno Divino Rocha, há risco, inclusive, de morte. “Já acompanhei casos de cirurgias mal-sucedidas em que o animal teve pneumonia e acabou morrendo. Outro malefício é a perda da capacidade de comunicação e de demonstrar dor ou fome, por exemplo”, reforça o profissional. 

No caso do corte de orelhas, há risco para a saúde auditiva do animal, cujos ouvidos ficam mais suscetíveis a infecções. “Cada curvinha do ouvido serve para direcionar o som para dentro do canal auditivo. Se a cirurgia é realizada, não conseguimos quantificar, mas em algum grau haverá perda da capacidade de ouvir”, completa Rocha.Riva Moreira

Um dos rottweilers do criador Márcio, presidente do Clube Mineiro de Rottweiller (RottMinas), Jecki tem a mesma idade da resolução do CFMV e não passou pela cirurgia

Além disso:

De acordo com a resolução do CFMV, a caudectomia só é permitida em ovinos de raças produtoras de lã, desde que submetidos a anestesia e analgesia. A amputação parcial ou total de asas, por sua vez, pode ser feita em famílias de aves cujo comportamento reprodutivo dispense o voo ou em animais que passam boa parte do tempo no solo e/ou na água.

Se denunciados ao Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV), profissionais que realizarem os procedimentos sem justificativa clínica podem sofrer processo ético-profissional. Caso a intervenção seja feita por outro profissional que não seja veterinário, o autor pode responder por crime ambiental e exercício ilegal da profissão, ambos com previsão de detenção e multa.

Um estudo realizado com donos de gatos e publicado no Journal of Feline Medicine and Surgery mostrou que animais cujas unhas haviam sido extraídas mostravam-se mais agressivos e desobedientes. Conforme a pesquisa, os felinos eram sete vezes mais desobedientes em relação a fazer xixi e cocô no lugar certo. Além disso, mordiam quatro vezes mais, eram três vezes mais agressivos e comiam ou lambiam os próprios pelos numa frequência três vezes superior em relação aos animais com unhas mantidas.

“Cirurgias como essas prejudicam não só a relação do animal com o dono, mas a comunicação deles com os outros bichos”, reforça o presidente do CRMV-MG, Bruno Divino Rocha.

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