'Ser bom ou mau é escolha': confira entrevista com o filósofo e professor Mario Sergio Cortella

Patrícia Santos Dumont
05/12/2019 às 16:00.
Atualizado em 05/09/2021 às 22:56
 (Elaine Higa/Divulgação)

(Elaine Higa/Divulgação)

Quem é você? Justo, generoso ou intolerante e ganancioso? Tem mais vícios ou virtudes? Costuma ser bom o tempo todo ou às vezes se pega fazendo pequenas maldades? Já parou para refletir sobre os próprios comportamentos e o que o levou a tê-los: circunstâncias da vida ou escolhas que fez? Sobre isso e as possibilidades de sermos “anjos ou demônios” bati um papo – descontraído, apesar do tema – com o filósofo, professor e escritor Mario Sergio Cortella.

Como se deu a concepção de “Nem Anjos Nem Demônios”, seu livro com a Monja Coen?
Tenho outros livros, nessa coleção, sobre ética, política, sobre moral, esperança. Mas nunca tinha colocado num diálogo mais direto alguém com a marca da filosofia ocidental, da religiosidade ocidental, como eu, e alguém ligado à concepção oriental asiática, caso da Monja. Juntamos essas duas formas mais usuais de entendimento sobre essa temática para trazer um debate mais forte sobre o que acontece no cotidiano, a necessidade de pensar a vida como escolha. A noção do bem e do mal como resultado de decisões e não como fatalidades.

Ser bom ou ser mau, portanto, não tem a ver com as circunstâncias da vida? Não somos o que somos levados a ser? São escolhas?
Essa ideia de que as escolhas feitas são sem alternativa não é uma percepção que a gente possa ter. A ideia de liberdade de escolha que temos é o que se chama de livre arbítrio. Quando alguém é movido por circunstâncias opressivas e tem uma reação a isso, até o campo da legislação criminal ou penal admite como sendo um atenuante. Mas, no conjunto das vezes, não é a circunstância que gere. Para mim, não é a ocasião que faz o ladrão. A ocasião apenas o revela. A decisão de ser ladrão ou não é anterior à ocasião. Há milhares de pessoas que encontram ocasião todos os dias, de desviar, de ter uma conduta negativa, e não o são. Portanto, a ocasião apenas permite que a pessoa se mostre naquilo que decidiu ser.Elaine Higa/Divulgação

Para Cortella, ser bom ou ser mau não tem a ver com as circuntâncias da vida, é questão de escolha


Na primeira página do livro, vocês falam sobre vícios e virtudes, que seriam qualidades negativas e positivas, certo? Podemos, então, dizer que tudo bem ter vícios, já que também são qualidades?
Sim. Eles existem na sua contraposição. Nós não elogiamos os vícios, apenas admitimos a existência deles. O fato de a gente ter doenças não significa que isso se sobreponha à nossa forma desejada de saúde. Por isso, a constatação da existência dos vícios apenas nos deixa em estado de alerta. Apenas sei que eles existem e que são possíveis em outras pessoas e também em mim. Neste sentido, admitir a presença de vícios é saber que nossa humanidade conta com essa condição, mas que não podemos, em nome da ideia de que errar é humano, justificar qualquer erro porque uma parte grande deles são escolhas. 


Não está tudo bem, então, em ser “mau” de vez em quando? Isso não nos ajudaria a levar a vida com mais leveza, mantendo um certo equilíbrio?
Não, não está tudo bem. É preciso não se acomodar com a ideia porque quando se diz nem anjos nem demônios não se está dizendo tanto faz, está se fazendo um alerta. O alerta é: nós podemos ser angelicais ou demoníacos. Cuidado! Ser angelical, isto é, ser alguém que se move pela bondade, é algo desejável. Ser alguém que se move pela maldade é uma possibilidade também. Ser anjo ou demônio é uma escolha. 

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Mas não traria mais leveza para nossa existência se a gente tivesse a permissão, talvez, de em alguns momentos tender mais para um do que para outro extremo? 
Olha, poderia até tornar a vida mais emocionada, mas não há necessidade disso. Nós, humanos, temos uma coisa, até um sinal de inteligência nas espécies, que são os jogos, nossa capacidade lúdica. Quando você vê uma partida de futebol, uma disputa dentro de quadra, quando você tem um grupo jogando truco, existe ali a possibilidade de vencer o outro, de brincar com ele. O jogo é exatamente essa possibilidade do exercício eventual de algumas coisas que não são só angelicais. Eu, por exemplo, sou jogador de truco, um jogo que tem por finalidade brincar com o adversário, tripudiar, fingir que se tem uma carta. Na vida, eu não faria isso. Mas no truco eu posso. Então, sim, há momentos em que essa permissão vem à tona. Onde pode? No teatro, no cinema, na música, no jogo. A gente sabe que a brincadeira é séria, mas é brincadeira.

Nem todo mundo é bom ou mau o tempo todo. Mas muitos de nós buscam ser mais bons do que maus. É da natureza humana? 
Em grande medida, nós desejamos primeiro a ideia de bondade que supere a maldade. Quando ninguém escapa de fazê-lo e quando a pessoa não é alguém marcada por algum tipo de desvio psiquiátrico, em grande medida preferimos a bondade à maldade porque ela nos faz ser aceitos, há uma solidariedade maior em relação à convivência. Isso também nos leva a receber de volta mais situações de bondade. Há pessoas que caminham numa trajetória da maldade como sendo sua escolha mais expressiva, mas são as que consideramos moralmente adoentadas, com algum tipo de desvio psiquiátrico ou com uma perspectiva de existência em que só consegue se glorificar na maldade. Ainda assim, o número de pessoas que têm essa perspectiva é muito reduzido, do contrário, nossa vida em comunidade já teria se rompido há muito tempo. O que não significa que a gente não tem em nós essa postura angelical como sendo uma escolha, e também a demoníaca como possibilidade.Paulo Fleury/Divulgação

"Nem Anjos Nem Demônios" foi escrito por Cortella e Monja Coen, representante do zen budismo no Brasil

É possível deixar o ruim de lado para ser o tempo todo bom?
O esforço é esse, que eu não fira nem outra pessoa na sua integridade física, moral e espiritual, nem a mim mesmo nessas mesmas integridades. Portanto, que eu não produza dano. Essa é a forma mais inteira de existir. É possível? Sim. Essa é a intenção. Evidentemente isso exige um esforço adicional, um formação mais continuada, exige um envolvimento da família, da escola, da comunidade religiosa, da atividade pública, do mundo, da comunicação. Mas não é uma impossibilidade. Volto ao que eu dizia: o número de canalhas no nosso país não chega a 5%. O restante da população trabalha, atua, sai de madrugada, tem o seu esforço. Isso significa que ainda há bondade. Por mais que tenhamos notícias cada vez mais horrorosas sobre violência urbana, sobre convivência brutal, essas notícias não são o tempo todo, senão já teríamos rompido nosso tecido social.

Isso explica o capítulo “Adianta ser bom?”. Afinal, adianta?
Adianta se você tem isso como sua maneira não de ter uma vida banal, fútil e descartável. Não vejo vantagem alguma em alguém que ao obter sucesso olha que o caminho feito foi apodrecido, sujo, que até conseguiu a vitória, mas não foi merecida. É muito mais gostoso não fazer gol de mão. É muito mais gostoso ser capaz de ser aprovado com nota de quem não colou. Neste sentido, há autopercepção e, portanto, a noção de merecimento.

A bondade é possível num mundo que parece querer nos corromper o tempo todo, a todo custo?
Claro. Aliás, mais do que possível, é necessário ser bom. E volto àquilo que te dizia: o número de patifes, canalhas, de corruptos é muito menor que o número daqueles que não o são. Insisto num ponto: o número de brasileiros que desvia, corrompe, pilha aquilo que é propriedade privada ou pública não chega a 5% da população. É que esses 5% tentaram fazer duas coisas: fazer os outros acreditarem que não ser canalha é uma forma de ser imbecil, idiota, e que ser canalha é ser invulnerável, isto é, que não será pego. Neste sentido, não só é possível como temos que formar as novas gerações nessa direção. A ideia é preparar alguém para o quê? Para ser malfeitor ou para ser alguém que engana, desvia? Essa é uma escolha, mas não acho que seja uma boa escolha. Não dá alegria nem mérito.

Temos vivido um momento, exacerbado principalmente pelas redes sociais, do politicamente correto, mas também do extremo oposto, das ofensas desmedidas, das opiniões emitidas sem nenhum filtro. Isso, de certa forma, não reforça essa dualidade, levando, muitas vezes, à escolha pelo lado demoníaco?
Sim. Em grande medida. Há grandes monstros que habitavam em muitas pessoas, em nós mesmos, que a gente nem sabia, que estavam adormecidos. O mundo digital, especialmente o das redes sociais, quando mal usadas, é uma grande possibilidade de um vir à tona da monstruosidade que já habitava em cada pessoa. O anonimato, a possibilidade de usar um pseudônimo, de não ser visto, permitiu a muitos covardes que praticassem agressão, preconceito sem se mostrar de maneira direta. E, por isso, claro, o mundo digital facilitou o desaparecimento da identidade do covarde ou da covarde e permitiu que essa pessoa possa exercer sua maldade verbal, intencional, com o menor risco de ter que assumir a responsabilidade.Reprodução do Instagram

Filósofo propõe um exercício de reflexão aos seguidores no Instagram

Como nos proteger disso e escolher sempre a expressão mais angelical de nossa personalidade?
A necessidade mais forte é a de identificarmos que isso não é liberdade de expressão. É abuso da liberdade de comunicação. Segundo, é preciso entender que uma coisa é brincadeira quando todos nos divertimos. A regra básica é não ria de mim, ria comigo. Terceiro, destruirmos as notícias falsas, que fazem com que a maldade trafegue com muita facilidade. Isso é feito introduzindo a capacidade reflexiva, a ideia de suspeita. É algo que faço com meus 3,8 milhões de seguidores no Instagram. A cada 2, 3 dias, faço uma selfie segurando uma frase dita por alguém e escrevo de vermelho “será?”.

Você propõe um exercício de reflexão... 
As frases servem para a pessoa refletir. Ao invés de eu, que sou professor, afirmar algo, porque, sim, faço minhas afirmações no rádio, na TV, nos textos que escrevo, nas entrevistas que dou. Ali é para refletir. Portanto, uma das maneiras de se contrapor a esse tipo de insanidade é exatamente a introdução da necessidade de reflexão. Tem um velho conselho de quem, em Minas Gerais, tinha que atravessar uma estrada de ferro, que era prestar atenção na placa que dizia: pare, olhe, escute.

Você e a Monja Coen também abordam a ideia da perfeição, que, na concepção ocidental, é uma virtude, mas inatingível. Dá para ser perfeito? A propósito, o que é perfeição?
A palavra perfeito significa feito por completo, feito por inteiro, concluído. E sempre digo que só há um tipo de ser humano perfeito, o cadáver. Afinal, ele não pode mais se modificar por si mesmo, somente por outros seres. A perfeição é um horizonte, não um estado que você alcança, um lugar no qual se chega. Nós não somos perfeitos, somos perfectíveis. Somos capazes de procurá-la. Por isso, a noção de que desejamos a perfeição, mas não o somos, é um sinal de alerta para que a gente não se considere invulnerável.

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