Brasil pode perder 30% de suas línguas indígenas nos próximos 15 anos

Agência Brasil
11/12/2014 às 11:16.
Atualizado em 18/11/2021 às 05:20
 ( FAS/Divulgação)

( FAS/Divulgação)

O Brasil corre o risco de perder, no prazo de 15 anos, um terço de suas línguas indígenas, estima o diretor do Museu do Índio, José Carlos Levinho. Atualmente, os índios brasileiros falam entre 150 e 200 línguas e devem ser extintas, até 2030, de 45 a 60 idiomas.

“Um número expressivo de povos, inclusive na Amazônia, tem cinco ou seis falantes apenas. Nós temos 30% [das línguas] dos cerca de 200 povos brasileiros com um risco de desaparecer nos próximos dez ou 15 anos, porque você tem poucos indivíduos em condições de falar aquela língua”, alerta Levinho.

Segundo ele, desde que o Museu do Índio iniciou um trabalho de documentação de línguas dos povos originais, chamado de Prodoclin, em 2009, os pesquisadores do projeto viram dois idiomas serem extintos, o apiaká e o umutina.

“Tem também a situação de [línguas faladas por] grupos numerosos, em que você tem um número expressivo de pessoas acima de 40 anos falando o idioma mas que, ao mesmo tempo, tem um conjunto de jovens que não falam mais a língua e não estão interessados em mantê-la. Então, você não tem condições de reprodução e manutenção dessa língua. A situação é um tanto quanto dramática. Esse é um patrimônio que pertence não só à comunidade brasileira como ao mundo”, destaca Levinho.

É uma perda irreparável tanto para as culturas indígenas quanto para o patrimônio linguístico-cultural mundial. Especialistas e indígenas ouvidos pela Agência Brasil afirmam que esses idiomas, que levaram séculos para se desenvolver, são fundamentais para a manutenção de outras manifestações culturais, como cantos e mitos.

Além disso, as línguas são sistemas complexos que, uma vez estudados e compreendidos, podem contribuir para uma melhor compreensão da própria linguagem humana. Indígenas ouvidos pela reportagem também consideram seu idioma materno um instrumento de autoafirmação da sua identidade e da sua cultura.

Quem também acredita que essa extinção possa ocorrer nos próximos anos é o linguista Wilmar da Rocha D'Angelis, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador do grupo de pesquisas Indiomas, especializado em línguas nativas do território brasileiro. Sua estimativa é que pelo menos 40 línguas sejam perdidas no prazo de 40 anos.

“Nenhum linguista gosta de fazer esse tipo de vaticínio, até porque nosso papel costuma ser o de contribuir para que tais línguas minoritárias se fortaleçam e desenvolvam estratégias de sobrevivência”, destaca D'Angelis. “Eu arriscaria dizer que devem se extinguir, nos próximos 40 anos, a média de uma língua por ano”, completa.

O número de idiomas falados por indígenas brasileiros varia de uma fonte para outra, já que a definição de fronteiras entre as línguas é um exercício subjetivo, que depende de fatores como critérios gramaticais, linguísticos e até políticos. D'Angelis estima que existam no Brasil entre 150 e 160 idiomas. Em seu site, o Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas da Universidade de Brasília (UnB) lista 199.

O portal Ethnologue.com, que funciona como um banco de dados das línguas faladas hoje no mundo, lista cerca de 170 línguas indígenas com falantes vivos no Brasil. Entre esses idiomas, 37 são considerados “quase extintos”, ou seja, os falantes são idosos e têm pouquíssima oportunidade de usar o idioma. Há ainda 23 línguas consideradas “moribundas”, ou seja, que são faladas apenas pela faixa etária mais velha da população, mas ainda são usadas no cotidiano por essas pessoas.

Excluindo-se essas 60 línguas, sobram cerca de 110 que ainda são usadas pelas parcelas mais jovens da população. Mesmo assim, é preciso considerar que muitas delas têm poucos falantes. D'Angelis diz, por exemplo, que 100 línguas brasileiras têm menos de mil falantes.

O pesquisador lembra que cerca de mil idiomas indígenas brasileiros foram extintos nos últimos 500 anos. “Na esmagadora maioria dos casos, a extinção se deu junto com a extinção da própria comunidade de falantes, isto é, os próprios índios”, afirma o pesquisador.

Segundo ele, hoje o maior risco para a existência desses idiomas não está mais no extermínio da população indígena. “Ainda que se conserve, em áreas como Mato Grosso do Sul, Rondônia e algumas outras partes da Amazônia, uma situação de violência institucionalizada que ainda tem essa marca genocida, a destruição das línguas minoritárias, no Brasil atual, não depende do extermínio dos falantes. Os processos de escolarização, a exploração da mão de obra indígena e diversos programas sociais, incluindo aqueles que favorecem a entrada da televisão em todas as aldeias, vêm causando impacto considerável.”

Para o diretor da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, no Amazonas, Isaías Pereira, quando um índio deixa de falar sua própria língua, perde-se também uma parte importante de sua cultura. “Com o descobrimento do Brasil e a colonização, desde aquela época, começamos a perder nossa cultura. A gente tem que ficar lutando para manter nossa própria cultura, nossa própria fala.”

Já o pesquisador Glauber Romling da Silva, que participa do projeto de documentação do Museu do Índio, compara a perda de uma língua à extinção de uma espécie. “Quando se preserva uma língua, se está preservando os costumes e tudo que vem junto com isso. Muitas vezes o perigo de extinção não é só na língua em si. Às vezes, a língua até mostra uma vitalidade, mas seus estilos formais, cantos, a parte cultural em que ela está envolvida somem muito rápido. De uma geração para outra, isso pode sumir”, diz.

Romling lembra que a Constituição garante uma educação diferenciada aos indígenas, com escolas próprias, que ensinem o idioma nativo. No entanto, segundo ele, há uma série de dificuldades que comprometem o ensino do idioma e até a qualidade da escola como um todo, como a falta de professores treinados e de material didático, além de problemas estruturais na própria unidade de ensino. Diante disso, muitos jovens passam a frequentar escolas urbanas.

O diretor do Museu do Índio, José Carlos Levinho, acredita que, da forma como são estruturadas hoje, as escolas nas aldeias não contribuem para a preservação da cultura e da língua desses povos.

“A educação é um processo de socialização e quando ela é mal fundamentada, cria mais problemas do que soluções. Você encontra aberrações desde a maneira como as escolas são construídas até sua lógica de funcionamento. A estrutura não tem a flexibilidade necessária para dar conta daquela realidade. O grande problema na relação com os índios é não considerar as particularidades”, diz.

Segundo ele, é preciso que os governos dialoguem com os indígenas e levem em consideração a singularidade de cada povo. “É preciso enxergar o outro de verdade, respeitar o outro do jeito que ele é. E criar as condições para que se possa atendê-lo.”

A secretária nacional de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, Macaé Evaristo, diz que o governo tem buscado investir na formação de professores indígenas por meio do projeto Saberes Indígenas na Escola, para garantir que o idioma nativo seja passado para as crianças nas escolas.

“Nós organizamos redes com as universidades para atender à diversidade de línguas indígenas. Hoje no projeto Saberes Indígenas estamos trabalhando na formação de professores em 77 línguas indígenas”, explica. “Mas é uma longa caminhada. É uma agenda complexa.”

Segundo ela, o Ministério da Educação (MEC) também tem investido na pesquisa e documentação de línguas indígenas, na preparação de materiais didáticos e na construção de escolas indígenas.

“Nós partimos do pressuposto da garantia da educação a crianças, adolescentes, jovens e adultos, independente de sua etnia em qualquer lugar do país. Nossa orientação aos sistemas de ensino é que se escute as populações no desenvolvimento do planejamento da oferta educativa. Que [os sistemas] garantam que aquelas populações que têm uma língua própria tenham acesso ao ensino em sua língua materna e acesso ao português como segunda língua”, diz a secretária.

Línguas indígenas ganham reconhecimento oficial de municípios

Em 2002, São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do estado do Amazonas, tornou-se o primeiro município brasileiro a alçar línguas indígenas ao mesmo status do português. Uma lei municipal tornou o tukano, o baniwa e o nheengatu (derivado do tupi antigo e usado como língua franca na Amazônia durante décadas) línguas co-oficiais da cidade.

Segundo a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), em São Gabriel da Cachoeira são falados 18 idiomas. A Foirn considera o Alto Rio Negro uma das regiões de maior diversidade étnica e linguística da Amazônia.

A lei municipal garante, entre outras coisas, que as repartições públicas tenham atendimento, oral e escrito, nas quatro línguas. Os documentos públicos e as campanhas institucionais da prefeitura também devem ter versões nos três idiomas indígenas.

O vice-prefeito, Domingos Camico Agudelos, diz, no entanto, que está sendo difícil implantar a lei, principalmente pela falta de pessoal capacitado para redigir os documentos públicos na três línguas e para atender pessoas nas repartições públicas.

“Em algumas instituições até tem essas pessoas, mas é muito difícil manter três pessoas [em cada repartição] para falar as três línguas. Sempre temos pelo menos uma pessoa falando uma das línguas. Também temos um problema com relação a ter pessoal para elaborar ou traduzir documentos em nheengatu, baniwa e tukano para as pessoas. Isso ainda não avançou, mas temos o objetivo de fortalecer [essa política]”, diz Agudelos.

O vice-prefeito diz que o Instituto Federal do Amazonas (Ifam) está implantando um curso de graduação para professores de línguas indígenas em São Gabriel da Cachoeira e isso deve contribuir para formar quadros qualificados. Além disso, está em discussão a criação de uma regra unificada para a escrita desses idiomas.

Mesmo com as dificuldades, Agudelos acredita que a lei teve um efeito simbólico de valorizar as línguas indígenas e incentivar que as pessoas passem a usá-las no dia a dia, mesmo na área urbana do município.

“Hoje quando você chega em São Gabriel da Cachoeira, você pode verificar que todos os indígenas aqui na cidade falam sua língua. Há 15, 20 anos, isso era impossível, porque as pessoas tinham vergonha de falar sua língua materna e preferiam falar o português. Hoje, não. Se você passar 15 minutos andando nas ruas, você vai ouvir quase todas as línguas faladas aqui no município”, diz.

Recentemente, outros municípios seguiram o exemplo. Em 2010, o município de Tacuru (MS) adotou o guarani como língua co-oficial. Em 2012, foi a vez do município de Tocantínia (TO) tornar co-oficial a língua xerente.

O prefeito de Tocantínia, Muniz Araújo, diz que o município ainda está se preparando para colocar em prática a lei aprovada há dois anos. Segundo ele, a rede municipal de ensino planeja oferecer o ensino de xerente para todas as crianças do município, mesmo para os não indígenas.

“Ainda não foi decidido [a duração do curso de xerente nas escolas], mas será o necessário para que as crianças aprendam pelo menos o básico”, diz o prefeito. Segundo ele, os Xerente representam cerca de 40% da população do município de 7 mil habitantes. “[A lei] é uma forma de preservar e fomentar o uso da língua.”

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