Marco Antônio Lage: “Não existe recuperação sem trabalho”

José Antônio Bicalho - Hoje em Dia
Hoje em Dia - Belo Horizonte
25/08/2014 às 07:40.
Atualizado em 18/11/2021 às 03:55
 (Frederico Haikal)

(Frederico Haikal)

Diretor de Comunicação da Fiat Automóveis e diretor-executivo do Instituto Minas Pela Paz, iniciativa da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), Marco Antônio Lage é um defensor ardoroso da recuperação de ex-detentos. Desde que iniciou seus trabalhos, há sete anos, o Instituto já reinseriu no mercado de trabalho mais de quatrocentos apenados. Eles passaram por programas de qualificação e ganharam um emprego em empresas parceiras. O índice de reincidência no crime, ou de abandono do programa entre os participantes é baixíssimo, quase nulo, segundo Lage. E é esse resultado que ele utiliza como argumento contra o preconceito e para convencimento de novas empresas parceiras. “Deixamos a hipocrisia de lado e estamos usando a lógica. Estamos apontando uma solução para o principal problema do sistema prisional brasileiro, que é a reincidência no crime”, afirma.   De quem foi a ideia do Instituto? Foi do Belini (Cledorvino Belini, presidente da Fiat). A iniciativa surgiu no Conselho Estratégico da Fiemg (Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais), formado pelos CEOs das principais indústrias de Minas, que passou a discutir temas da gestão pública para levar para o então governador Aécio Neves. As discussões foram divididas em grandes temas, como saúde, educação, e o Belini ficou com defesa social. E ele teve a ideia de um instituto que pudesse desenvolver programas e articular a sociedade intersetorialmente para ações em prol da defesa social. E, hoje, já estamos no nosso sétimo ano.   O que era feito no início? Nossa primeira articulação foi para qualificar o serviço do Disque Denúncia (serviço de denúncias anônimas de crimes do Estado). Antes, o serviço era separado por corporação e a ideia era unificar os mantidos pela PM, Polícia Civil e Bombeiros. Então, propusemos e ajudamos na unificação em uma central e na melhoria da eficiência do serviço. Hoje, o call center do Disque Denúncia funciona 24 horas por dia, com softwares desenvolvidos pelo Minas pela paz. O serviço também permite que as denúncias sejam mapeadas rua por rua. E os denunciantes, que são anônimos, podem acompanhar a evolução da denúncia pela internet, por meio de um número de registro.   Esse foi o início. Depois... Depois veio o Programa Regresso. Porque o Instituto começou a articular a discussão do grande problema do sistema prisional brasileiro: o índice de reincidência criminal. Não existe estatística segura, mas estima-se que essa reincidência está em torno de 80% a 85%. Ou seja, de cada dez presos libertos, oito voltam para a prisão. Então, decidimos atacar esse problema.   Qual o motivo de um índice tão alto? O sistema penitenciário não recupera, penaliza. Não existe uma segunda chance. A pessoa está ali para cumprir pena e nada que ela realizar na prisão representará regresso à vida cidadã. O sistema não trabalha pensando nisso, mas só na pena.   O que foi feito, então? Decidimos trabalhar em duas frentes para conter a reincidência. A primeira, capacitar os egressos do sistema prisional. Abrimos uma plataforma de capacitação profissional com o apoio do sistema Sesi/Senai, da Fiemg, que agora também conta com o apoio da Fecomércio (Federação do Comércio de Minas Gerais) e seu sistema Sesc/Senac. E a segunda frente foi apoiar diretamente as Apacs (associações de proteção e assistência aos condenados).   Em relação à capacitação... O objetivo é capacitar e criar postos de trabalho. Estamos dando aos egressos uma segunda chance e trabalhando contra o preconceito que existe na sociedade. A sociedade rejeita o egresso. Os cidadãos e as empresas. E esse preconceito vem da desconfiança com o sistema prisional, que não educa nem recupera.   As empresas estão contratando egressos? Está dando certo? O Minas pela Paz já foi responsável pela contratação de 840 egressos. E esse número aumenta a cada ano. Nós também fomos ajudados pela lei que provisiona dois salários mínimos por mês, durante os dois primeiros anos, para as empresas que contratarem egressos. É um estímulo importante.   O número de contratações não é pequeno em relação ao volume de egressos? Ainda é. Minas tem 55 mil presos. Perto de 10%, ou seja, cinco mil pessoas, ganham liberdade a cada ano. Mas, é relevante que 840 dessas pessoas e suas famílias parassem de sofrer com o crime.   Quantos dos assistidos retornam ao crime?  O nível de evasão é baixíssimo. O que prova que a cultura do trabalho é fundamental para a recuperação de um apenado. Desenvolver a cultura do trabalho enquanto está preso é tão lógico como dois mais dois são quatro. Se ele sai da prisão sem profissão, sem se capacitar e sem portas abertas para a empregabilidade, qual a alternativa? Ele vai voltar para o tráfico.   Porque o apoio às Apacs? Minas é o Estado onde a experiência das Apacs deu mais certo. São instituições sem fins lucrativos, pautadas pelo voluntariado. E com uma filosofia baseada na disciplina, na família, na espiritualidade e no trabalho. São pequenas unidades prisionais, com no máximo 200 presos, onde não existe agente carcerário, polícia nem arma. Os presos trabalham e o Estado gasta com eles, em média, R$ 700 reais, contra R$ 2,5 mil a R$ 3 mil no sistema tradicional. Nesse modelo, o índice de reincidência criminal gira em torno de 15%, o oposto do verificado nas prisões públicas. Isso provou que é um modelo bem sucedido e por isso resolvemos apoiar. Não é uma solução, mas é uma bela alternativa.   O que tem sido feito junto às Apacs? O que estamos fazendo é apoiar um modelo muito assertivo e eficiente. O Minas pela Paz trabalha em duas linhas. Desenvolve programas para melhorar a gestão das Apacs e induz empresários a investir na implantação de unidades produtivas dentro das instituições. E isso passa por programas de empregabilidade e de capacitação profissional para os egressos.   De que tipo são essas unidades produtivas?  De vários. Padarias, que produzem para o mercado e para escolas públicas, hortas, confecções, autopeças... A de Pouso Alegre é quase autossustentável, ou seja, não gasta quase nada do Estado. A Magnetti Marelli (multinacional do setor de autopeças do Grupo Fiat) tem uma unidade na Apac de Itaúna.   E quanto à capacitação para gestão? Ela é feita por meio do programa Além dos Muros, que é apoiado pela Comunidade Europeia. Investimos na capacitação dos gestores para a Apac e também na capacitação profissional dos egressos. É um projeto mantido pela ONG italiana Avsi, que traz recursos para seu programa de desenvolvimento da gestão e de capacitação profissional para pequenas unidades produtivas. São € 300 mil a cada dois anos.   Qual o problema do sistema tradicional? Todos sabem muito bem qual o problema. Ele é caro e ineficiente. Desperdiçamos dinheiro num sistema falido. A melhor definição que já li é que é um “fracasso multibilionário”. Gasta muito dinheiro e não recupera ninguém. Pelo contrário, gera reincidência e, por isso, gera ainda mais gasto.   E depois que ele deixa a prisão? Os empresários ainda temem empregar um ex-detento? Não é isso que temos visto. É claro que ele necessitará de um acompanhamento psicossocial por alguns anos. Mas, o que estamos verificando é que o risco para a empresa é quase zero. É preciso acompanhar, dialogar e criar um sistema de relacionamento com uma lógica é diferente. Muitas vezes, são pessoas traumatizadas. Mas é uma experiência que faz bem para o ex-detento e para a empresa. Ela está dando uma segunda chance para um ex-criminoso se transformar em um trabalhador. A sociedade precisa cuidar do egresso e as empresas está dando essa oportunidade.   E, agora, começaram a trabalhar com adolescentes? Nós lançamos o programa Trampolim, que é a mesma coisa, só que com os menores em cumprimento de medidas sócio-educativas. Estamos criando oportunidades de emprego formal e capacitando os adolescentes para o trabalho. Começamos um piloto neste ano e estamos trabalhando com 30 menores, dentro do conceito do primeiro emprego.   Como está evoluindo a adesão de empresas ao programa? Na semana passada, tivemos a adesão de 13 novas empresas. Hoje somos 50 empresas, sendo 11 fundadoras, contando com Fiemg, mais 39 parceiras.   O orçamento é suficiente? O orçamento do instituto é baixo, de pouco mais de R$ 1 milhão por ano. A função principal é de articulação entre empresas, Estado, comunidades e sociedade. Dá trabalho, mas não custa muito. A própria Fiemg, que dá apoio fundamental através do Sesi/Senai. Mesmo assim, somos auditados pela Ernst & Young e temos uma governança muito transparente.   Como funciona a estrutura de comando do Instituto? O Belini é o presidente e eu sou o diretor-coordenador. Temos uma diretoria que se reúne mensalmente, formada pelos membros das empresas fundadoras. A cada dois meses nos reportamos ao Conselho Estratégico da Fiemg e apresentamos os resultados dos programas.   Mas vocês também estão fazendo um trabalho preventivo. Como é isso? Existe uma frase inspiradora do José Saramago (romancista português): “para fechar as velhas cadeias precisamos criar as novas escolas”. É o que estamos batalhando. Para isso, criamos o braço de desenvolvimento social.   Quais os projetos? O primeiro foi um curso de pós-graduação para 240 professores e diretores da rede pública municipal de BH, com o objetivo de qualificar a gestão das escolas. Temos a PUC como parceira. Criamos agora um projeto novo, ligado ao futebol. Mapeamos 53 campos de várzea em BH e o projeto será reformar e construir salas de aula junto aos vestiários. Vamos dar uma arrumada nos campos, deixá-los dignos para a prática esportiva. E junto com estudantes de pedagogia, educação física, fisioterapia e outros, vamos atender em cada campo 280 crianças por mês. Uma hora de esporte e uma hora de sala para reforço escolar e aulas de cidadania, envolvendo temas como drogas, sexo, meio ambiente e lixo. Queremos ver meninos e meninas de chuteira e no anexo da sala de aula.   A recuperação de pessoas que cometeram crimes é um tema controverso. Como foi possível reunir pessoas e empresas para discutir o tema sem preconceitos e com objetividade? Essa discussão precisa ser baseada na lógica e na vontade de ver uma sociedade melhor. E o lógico é que não existe programa de recuperação sem o trabalho. Meu sonho é ver todas as penitenciárias brasileiras com unidades produtivas, educando, capacitando. Ensinando uma profissão e disseminando a cultura do trabalho junto a estes recuperandos. Sem esses elementos (a recuperação do apenado), é quase que impossível.   Mas o trabalho de presidiários também é um tema polêmico. Não estamos falando de trabalho forçado. Não é carregar pedra, porque isso não recupera ninguém. Na Coreia (do Sul) a maioria dos presidiários trabalham, alguns com carga horária de até 17 horas por dia. Mas a reincidência criminal é de quase 60%. Então, não é qualquer trabalho, nem qualquer modelo de trabalho. Estamos falando de trabalho que recupere a cidadania, que seja ferramenta de reinserção social, que devolva a dignidade para esses prisioneiros. Trabalho como laborterapia inicialmente, mas também para que ele tenha uma profissão, como processo para que o indivíduo encontre um caminho. Trabalho é caminho.   E porque a lógica é tão invertida? Não sei exatamente, mas tenho certeza que o dia que isso acontecer no Brasil o Estado vai gastar muito menos. E as famílias –as mais de 500 mil famílias que têm seus provedores presos–, vão ter de volta, em casa, um trabalhador.   Você enfrenta dificuldades para convencer empresas com essa lógica?  O Minas pela Paz é um case inédito no país. Representa a convergência de um grande número de empresas para um objetivo comum. Um projeto social, mas com muitas empresas juntas. Essa convergência é muito difícil no Brasil, onde as empresas estão acostumadas a trabalhar sozinhas. E essa convergência se deu justamente com o tema da segurança social, que é difícil, mas importante para a sociedade debater e atuar. Então, esse resultado mostra que a união e o entendimento do conceito não é assim tão difícil.

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