‘O Estado foi atrás da receita mais fácil, tributar o consumo’, diz Valter Lobato

Paulo Henrique Lobato
14/11/2019 às 22:09.
Atualizado em 05/09/2021 às 22:42
 ( LUCAS PRATES)

( LUCAS PRATES)

Presidente da Associação Brasileira de Direito Tributário (Abradt) e professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o advogado Valter Lobato é enfático: “A economia do país não vai andar se a gente não tiver um sistema tributário mais racional e mais justo”. Para o especialista, o atual sistema é uma das barreiras a manter o Brasil na crise econômica. “O investimento no Brasil é muito caro por conta do sistema tributário. Isso acaba causando, ou sendo, um dos fatores desta economia travada que vivemos. Este já é um fator de pressão grande”.

Por que o Brasil precisa de uma reforma urgente na legislação de impostos, na visão de um tributarista?
O sistema que se desenhou na Constituição de 1988 sofre com dois problemas graves. Primeiro: não efetivou uma série de regras e princípios que estavam lá. Segundo: o mundo mudou muito rápido. Você tem hoje novas tecnologias. A indústria já não é mais a grande força da economia. Hoje é o setor de serviços. Então, esta mudança de materialidade precisa se adaptar ao sistema tributário.

A Constituição de 1988 é a Cidadã. Como ela tratou o sistema tributário para o cidadão? O que falta regulamentar 30 anos depois de promulgada?
Ela tem mais palavras do sistema tributário do que a Constituição norte-americana toda. Regulamentou muito o sistema tributário. Prometeu um Imposto de Renda progressivo e de generalidade, ou seja, atingindo a todos. Ela prometeu uma tributação sobre o consumo, do nosso ICMS, não cumulativo, isto é, tributar só o valor que se agrega a cada etapa para repercutir no consumidor final. Ela prometeu os impostos sobre propriedade de forma progressiva. Nada disso foi efetivado. Pelo contrário. De lá para cá, a gente viu as despesas do Estado crescendo muito e este Estado, como tem uma despesa para pagar, correu atrás da receita mais fácil. E qual é? A tributação sobre consumo. O Brasil tributa muito o consumo, pouco a renda e quase nada o patrimônio. Isso faz com que a tributação fique regressiva. Se você tributa muito o consumo, você tributa mais quem tem menos. E esta é a grande promessa da Constituição que não foi cumprida. Ela tinha uma promessa de uma justiça tributária maior, tributar segundo a capacidade contributiva e isso não foi cumprido.


A população não tem o retorno desta tributação...
A carga tributária no Brasil é de 32% a 35% do PIB (Produto Interno Bruto). É uma carga tributária que, na média dos países desenvolvidos, é razoável, mas o retorno que se tem é quase nada. Você não tem um serviço público eficiente, um Estado eficiente. E os particulares precisam pagar algo a mais.[/ENTR_RESP]

Como a Abradt classifica o Imposto de Renda, um dos grandes alvos de críticas do contribuinte?
Nos anos 1980 havia uma tabela com mais de 12 alíquotas, incluindo a faixa de isenção. Hoje, temos quatro alíquotas no máximo. Isso faz com que uma pessoa que ganha R$ 5 mil seja tributado em 27,5% (assim) como uma pessoa que ganha R$ 50 mil. Óbvio que 27,5% para quem ganha R$ 5 mil representa muito mais do que para uma pessoa que ganha R$ 50 mil. Por isso ele é regressivo. Além disso, a tabela não foi corrigida nos últimos anos. O Supremo Tribunal Federal (STF) teve oportunidade de determinar a correção e entendeu que estaria agindo com ativismo judicial, portanto, não corrigiu. As deduções não são corrigidas... Os limites de educação de dependentes... E você tributa basicamente o assalariado, o funcionalismo público. Porque há o fenômeno da pejotização: os prestadores de serviços que têm uma tributação menor. 

A tributação no país é complexa...
Temos 50% de carga tributária sobre o consumo. Essa tributação se divide sobre muitos impostos, o que torna o sistema muito complexo. Então temos tributação sobre o consumo: ISS para o prestador de serviço, ICMS para mercadorias, IPI, PIS e Cofins. Cinco tributações sobre o consumo. Isso gera ausência de transparência perante o consumidor final, uma cumulatividade, ou seja, um tributo incidindo sobre o outro é tributar mais que o valor agregado. Então, aquele valor que estava tributado lá no começo da cadeia em 18%, como gera cumulatividade, chega no final a 30%. Enfim, vai havendo um efeito cascata. Há valores que chegam a 50%. Nossa energia elétrica é por aí...

Tudo sinaliza, doutor, que antes da reforma tributária haverá a administrativa. Ela é necessária para que ocorra a tributária?
A tributária é mais difícil de ser aprovada. Parece ser uma estratégia do governo, primeiro, resolver aquilo que, politicamente, é mais fácil de articular, que é administrativa. Nestas primeiras articulações, ficou muito claro para o governo que a proposta tributária não será fácil de passar (no Congresso Nacional) até porque mexe com a arrecadação estadual, com a arrecadação municipal e com a arrecadação federal.

Desde 1993, quando o senhor se formou na UFMG, qual o seu entendimento sobre o vaivém das tentativas da aprovação da reforma? Desta vez será aprovada?

Qual a diferença daquela época para agora? O Brasil passa por uma recessão econômica brutal e um dos fatores é o sistema tributário. O investimento no Brasil é muito caro por conta disso, o que acaba causando – ou sendo – um dos fatores desta economia travada que o Brasil vive. Este já é um fator de pressão grande. Segundo: parece que as empresas – ou sociedade civil – estão mais envolvidas no assunto. Acho que, neste ponto, há uma grande chance. De 1988 para cá, municípios criaram uma guerra fiscal insana, estados também. A base de arrecadação deles caiu muito. Isso fez com que (prefeitos e governadores) têm ciência de que o sistema precisa ser reformulado. O último fator é mundial: as bases de tributação mudaram. Antes você tinha a tributação na mercadoria, na indústria. Hoje, vemos uma mudança completa, de que as grandes materialidades, as grandes riquezas estão sendo geradas na tecnologia. 


Qual a opinião da Abradt sobre a Lei Kandir? Merece  um capítulo especial na reforma?
Quando a Constituição foi promulgada, dando competência aos estados para instituir o ICMS, havia uma previsão de uma norma geral, ou seja, uma lei complementar que regularia todo tributo. Seria o grande ponto de ligação na Constituição com os estados, criando um federalismo – vamos dizer – pacificando o federalismo. O problema é que a Lei Kandir foi omissa em muitas coisas. Deixou aos estados a possibilidade de manipularem alíquotas e os estados agiram também contrários à Lei Complementar 24, estabelecendo benefícios fiscais sem o consentimento do Confaz (Conselho Nacional de Fazendas) e isso gerou guerra fiscal e redução de base. Segundo ponto importante é a questão das exportações. Imunizou os produtos industrializados, mas disse que os produtos primários e semi-elaborados seriam tributados. A Lei Kandir ampliou a imunidade, dizendo: nós não vamos tributar sobre nenhuma exportação de mercadorias ou serviços que estão dentro de sua incidência. Isso era uma política econômica clara do governo da época, que queria melhorar a balança comercial do país, criar competitividade de nossos produtos lá fora. O que aconteceu foi que a Lei kandir estabeleceu um regime de compensação para os estados. Se a União em sua política econômica queria desonerar as exportações, ela deveria ressarcir aquela perda de arrecadação dos estados e este ressarcimento nunca veio. Hoje está tentando se encontrar um acordo sobre isso.

O que senhor defende na reforma tributária?
Entre as propostas mais avançadas, a PEC 145, que o presidente da Câmara dos Deputados (Rodrigo Maia - DEM/RJ) defende, e a 110, que o presidente do Senado (Davi Alcolumbre - DEM/AP) defende, não são bem uma reforma do sistema tributário. São reformas da tributação sobre o consumo. A 110 extingue nove tributos e cria  um imposto único sobre todos os bens e serviços e mais um seletivo para determinados produtos supérfluos. A 145 extingue os cinco tributos de que falei anteriormente (PIS, Cofins, IPI, ISS, ICMS) e cria um novo  tributo, o IPS, que incidiria também sobre bens e serviços. (Também) cria um tributo seletivo nos produtos supérfluos. Na verdade, é uma mudança que visa mexer só sobre o consumo. Não há nada, por exemplo, sobre Imposto de Renda, que estão em outras PECs que não estão avançadas (em termos de tramitação). Esta simplificação tem muitos defeitos. Tem grandes qualidades, como simplificar o sistema, extinguindo tributos. É criada uma atividade em que o tributo não incida mais de uma vez na cadeia produtiva. É passar a tributação para o destino, pois em grande parte, hoje, se dá na origem, o que é uma injustiça absurda. Porque concentra renda: não a leva para outras regiões mais pobres. Portanto, têm muitas virtudes. A dificuldade de aprová-las é que retiram a tributação dos municípios e dos estados e a leva para a União. É o federalismo sendo reduzido e a concentração de renda na União. Outro ponto que precisa ser melhorado é que têm única alíquota. Isso engessa o governo numa eventual mudança de política fiscal, numa crise econômica mundial. Têm prós e contras. As duas propostas têm um período de transição: seis anos em uma e 10 anos em outra. Acho que precisamos de medidas imediatas. Eu aperfeiçoaria as que estão aí para lá na frente unificar (os tributos).

A União está chamando as associações, institutos ou outras instituições especializadas em direito tributário para conversar? 
O Executivo não teve ainda uma proposta (oficial). Há algumas ideias (do governo). O Executivo, vez por outra, por meio da imprensa, aparece com algumas propostas, mas nada ainda escrito e concreto. Há uma comissão do ministro da Economia (Paulo Guedes) para estudar (o assunto), mas o que há hoje são propostas de origem legislativa. A economia do país não vai andar se a gente não tiver um sistema tributário mais racional e mais justo.

 
 

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