Fenômeno da TV mineira nos anos 80, Tia Dulce teria inspirado até a Xuxa

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com.br
03/02/2020 às 09:08.
Atualizado em 27/10/2021 às 02:31
 (Lucas Prates)

(Lucas Prates)

 “A vontade da Xuxa em fazer um programa infantil nasceu no ‘Clubinho’”, assinala Dulce de Melo Rosa, a Tia Dulce, que virou sinônimo de programa infantil em Minas por mais de 50 anos. A apresentadora, hoje com 84 anos, fez muito sucesso na década de 1980, quando esteve à frente do
“Clubinho da Tia Dulce”, na TV Alterosa. Foi este programa que, segundo Tia Dulce, teria inspirado Xuxa, então uma modelo que namorava o ex-jogador Pelé, a conceber uma atração similar para a TV Manchete. 

“O Clubinho foi padrinho disso. Na época, ela foi participar de um programa com Eduardo Couri, jornalista que escrevia sobre a alta sociedade mineira. O Atlético estava fazendo aniversário e houve uma festa na sede de Lourdes, em que ela saía seminua de um bolo”, diz. No estúdio da Alterosa, ao ver algumas crianças no corredor, Xuxa perguntou a Couri o que estaria acontecendo e pediu para ver a gravação do programa. 

“No final, ela me deu parabéns e fez uma observação: de que, se estivesse no meu lugar, não deixaria chamá-la de ‘tia’ de jeito nenhum. Expliquei que era uma forma carinhosa, um termo de ligação entre uma criança e um adulto, sinônimo de proteção e carinho. E brinquei que estava mais para avó do que para tia. Ela riu e me disse que aquilo era o que queria fazer quando voltasse”, recorda Dulce. Pouco tempo depois, a futura rainha dos baixinhos estreava o próprio programa.

Numa entrevista anterior, você disse que aprendeu a fazer TV de foram autodidata. Como foi isso?

Quando entrei para a televisão, eu não conhecia nem o aparelho, porque foi uma coisa muito repentina. Eu trabalhava muito, na Secretaria de Viação e Obras Públicas, de sete da manhã até as cinco da tarde. Depois descia a avenida João Pinheiro em direção ao Cine Brasil, onde eu era a bilheteira de cinema. Na verdade, eu não era bilheteira só do Cine Brasil. Ficava à disposição para qualquer cinema (do grupo Cinemas e Teatros) que precisasse. Eu era muito rápida para vender ingresso. No Cine Tupis, que depois passou a se chamar Jacques, passava o Festival Tom & Jerry aos domingos. Eles sempre me mandavam para lá para tirar as filas. Vendia os ingressos cantando, feliz da vida com o pessoal chegando. O pessoal da empresa ficava encantado como eu trabalhava.

Essa alegria que marcou a sua passagem na TV já era, portanto, algo nato?

Sim, comigo não tem tempo ruim. As dificuldades acompanham a gente, claro. O que ano que passou, por exemplo, foi um dos mais difíceis da minha vida. Por que? Porque foi a primeira vez que fiquei sem trabalhar. Eu fui dispensada do gabinete do deputado Ivair Nogueira, após ele não ser reeleito. Trabalhei com ele por 26 anos. Pensei: já estou com oitenta e tantos anos, vou tentar sobreviver. Mas a renda ficou pequenininha assim... A aposentadoria não mantém a vida que você tinha antes. Então temos que nos preparar muito bem antes de se a aposentar, não deixando para fazer amanhã o que pode ser feito hoje. Eu perdi o foco e, quando me aposentei, a vaca tinha ido para o brejo.

Você começou a trabalhar como bilheteira de cinema?

Eu trabalhei em casa de família, quando nós mudamos para Belo Horizonte, em 1948. Eu nasci em Nova Lima. Foi lá que minha mãe conheceu o meu pai, que veio de Jaboticatubas tocando tropa, para a mina do Morro Velho. Ele gostou de Nova Lima e pediu emprego na mina. Era muito destemido, inteligente e alegre. Num instantinho virou chefão lá. Teve oito filhos com a minha mãe. Papai iria se aposentar em 30 de novembro de 1948. No passado eram assim: as pessoas se programavam para aposentar, sabendo o mês, o dia e a hora. Mas ele morreu no dia 19 de novembro. Minha mãe ficou apavorada, pois nossa renda caiu muito. O filho mais velho tinha 13 anos e o mais novo ainda estava no colinho dela, mamando. Papai já tinha comprado uma casa em Belo Horizonte, no Santa Efigênia, e estávamos morando na rua Euclasio quando ele morreu, consequência de uma infecção intestinal. Mamãe fez uma reunião com a gente e disse que, à medida que fizéssemos 14 anos, iríamos trabalhar. Eu me propus a ser babá na casa de uma tia que morava do lado do Palácio (da Liberdade). Tinha 10, 12 anos. Depois fui trabalhar na Oliveira Costa, uma empresa de papéis. Primeiro fiquei na loja e depois me passaram para a gráfica. Foi lá que aprendi a contar grandes quantidades de papel.

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 Como surgiu a primeira oportunidade na TV?

Eu estava no hospital visitando uma amiga, Heloísa Mallard, uma grande atriz que trabalhou com Chico Anísio (no programa “Chico City”). Ela ficou sete dias no hospital por causa de uma apendicite e, certo dia, recebeu um senhor, Mário Veras, que trabalhava numa agência de publicidade americana que tinha sede no Rio Grande do Sul, em São Paulo, Rio de Janeiro e que estava abrindo outra em Minas Gerais, por causa da inauguração da TV Itacolomi. Na época, acharam que os mineiros iriam explodir de comprar aparelhos e anunciar. Mas o mineiro é realmente cabeça boa, viu?! Ficou quietinho, na dele, e esperou a coisa crescer. O Mário precisava de uma pessoa, que era amiga pessoal da Heloísa, para participar de um programa deles, de 17h às 18h, no encerramento da programação. Naquele tempo, o anunciante comprava um horário – ainda hoje existe isso. O programa era uma revista eletrônica chamada “Seção Feminina”, totalmente dedicada à mulher, com assuntos sobre moda, gastronomia, medicamentos e cultura. E tinha um jornalzinho de dez minutos e uma novela de 15 minutos. Eles viram que não era possível trazer gente do Rio, por causa da despesa, e passaram a procurar gente daqui. Então, a amiga da Heloísa estava viajando e esta me indicou. “Leva a Dulcinha! Ela é tão bonitinha e jeitosa! Contrate-a que vai dar certo”, disse. Lembro direitinho deste dia, pois foi um diálogo tão idiota. Depois de ele marcar um teste para o dia seguinte, eu respondi: “Se eu for, vou ajudar o senhor?”. Não tinha a menor noção do que era TV. Só vi o aparelho nos filmes. Ele ficou tão feliz que me falou: “Se der certo, Dulce, você não vai só me ajudar. Você vai se ajudar para o resto da sua vida”.

E como foi o teste?
Arrebentei de cara. Tinha que vender uma geladeira. Como não sei decorar, eu improvisei e eles ficaram impressionados. Na Igreja Santo Antônio, em Nova Lima, a gente ficava o mês todo para coroar Nossa Senhora. Eu sabia a minha música e de todos os outros anjinhos. A pianista ficava boba de ver e me escalava para todos os dias. Como acertei de estalo, o primeiro comercial que fiz foi o fogão elétrico Gardini. Eu fiquei do lado do fogão, com uma pastinha de plástico com o texto, e preparada para falar para a câmera. Começaria falando, sorrindo, e depois a câmera derivaria para o produto e eu poderia ler. O diretor pediu que eu esperasse o sinal dele para começar. Quando ligaram as luzes, eu não via absolutamente nada na minha frente. O diretor teve que “entrar” no chão para me avisar que podia falar. Eu ainda falei assim: “Posso falar?”. E prossegui: “Então está bom. A notícia que tenho é muito boa, sobre o lançamento de um fogão...”. Ficou como se fosse texto (risos). Perdi o andamento que me deram e pus uns cacos. Anunciei muitos produtos depois disso.

Quando a senhora começou a trabalhar com o público infantil?
Logo que eu comecei a trabalhar no Banco da Lavoura, percebi que o presidente Gilberto Andrade Faria era preocupado em chamar a atenção das crianças, para ensiná-las a fazer economia. No comercial para o banco, eu me comunicava com as crianças. Viram que eu tinha muito jeito, começaram a ir crianças no momento de fazer o comercial. Iam só para me conhecer. Eu punha alguns do meu lado na hora de falar e conversava com eles. O bolo cresceu e eu sugeri ao doutor Gilberto montar uma agência infantil. Ele adorou a ideia. Eu saí na revista americana “Time”, em duas páginas inteiras. Aí deixou-se de fazer o comercial para se realizar um programa infantil, onde eu recebia e conversava com as crianças, sorteava brinquedos e dava muito presente, além de chamar os desenhos animados. A partir daí, toda atração na TV Itacolomi que tinha criança eu estava dentro.

Você virou sinônimo de programa infantil. Como surgiu, em 1979, o “Clubinho da Tia Dulce”, na TV Alterosa?

O (Fernando) Sasso me abordou dizendo que estava precisando muito de mim. “A Alterosa está aí, mas só dá traço. Já estão pensando em fechar. Não tem cachê, estúdio e câmera, mas quero gravar com você algumas coisas lá no nosso escritório, num cantinho, e botar no ar. Eu quero você conversando com as crianças toda hora. Vou colocar isso a tarde toda. Tem uma sessão lá chamada ‘Clubinho da Criança’ e vamos colocar Tia Dulce comandando este clubinho. Pode chamar de Tia Dulce, né?”, falou. Fui mais para ajudar o Sasso. No dia que fui gravar, levei uma jardineira, tênis e umas camisetas Hering, pus um lenço para amarrar o cabelo e sentei no chão, com umas almofadas indianas bonitas que havia levado de casa. Tinha uns brinquedos de pelúcia grandões também. Em um mês, a audiência disparou e começou a dar fila no edifício Acaiaca, pois as crianças queriam subir ao estúdio e conhecer a tia Dulce.

Qual a razão do sucesso do programa?

A televisão estava carente de programa infantil. Tinham acabado com todos. No primeiro mês, recebemos mais de 20 mil cartas de gente querendo participar. Meses depois, a TV Itacolomi saiu do ar e passamos a ocupar o estúdio dela. Ganhei mais espaço, patrocinador – o Guaraná Antartica, a pipoca Guri, o iogurte Itambé e as lojas Bacana foram patrocinadores do primeiro ao último programa. Era tudo feito com naturalidade e muito amor, e as crianças sentiam isso. No primeiro aniversário do Clubinho, em 1980, fizemos o programa no Mineirinho. Foram 44 mil crianças! Uma insanidade! Uma irresponsabilidade! Quando entrei, fiquei com medo de as crianças se machucarem. Era o primeiro evento que o ginásio abriu as portas para receber que não fosse esporte. Entramos para os anais do Mineirinho como o maior público de sua história.

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