Idealizador de peça sobre família, Marcos Souza fala sobre o pai e os tios Betinho e Henfil

Bernardo Almeida
13/09/2019 às 22:27.
Atualizado em 11/08/2021 às 05:46
 (Maurício Vieira)

(Maurício Vieira)

Marcos Souza nasceu em São Paulo em 1971, reside atualmente no Rio de Janeiro, mas tem um DNA mineiro que vai desde a sede do Instituto Cultural Chico Mário, com o nome em homenagem ao pai, nascido em Belo Horizonte, até a vasta produção cultural em projetos como o “Musimagem” no CCBB-BH e a Bienal Funarte de Música e Cidadania no SESC Venda Nova. “O QG da família ficava na rua Venezuela, no Sion, casa da dona Maria”, conta Marcos, em referência à avó, que é de Bocaiúva, onde nasceram quatro irmãos, entre eles Betinho e Zilah Spósito, antes de se mudarem para Ribeirão das Neves, onde nasceu Henfil.

Em Minas, Marcos também realiza desde 2015 a Série Domingos Clássicos, em parceria com a Orquestra Ouro Preto. Série que encenou ontem, pela primeira vez, o espetáculo “Consanguíneos”, sobre a história dos irmãos que nasceram hemofílicos e foram vitimados pela Aids, não sem antes deixarem os próprios nomes na história do Brasil desde a década de 70, no auge da ditadura militar. Não à toa seus dois tios são citados nos versos “Meu Brasil que sonha com a volta do irmão do Henfil”, no hino da anistia de Aldir Blanc e João Bosco, diante do exílio de Betinho por oito anos.
Com muito bom humor, que ele alega ser característico da família, o músico Marcos Souza falou sobre lembranças do pai e dos tios, inevitavelmente emendando um assunto em outro para contar da vontade herdada de fortalecer o cenário cultural no Brasil.

Pai de gêmeos de 7 meses, disserta com a propriedade de quem arranja tempo para tocar inúmeros projetos simultaneamente e está prestes a somar a gerência de projetos da Orquestra Petrobras Sinfônica. Acumulando funções, falou enquanto acertava detalhes ao telefone com o diretor Chico Pelúcio antes do primeiro ensaio de “Consanguíneos”, que reúne ainda a Orquestra Ouro Preto e a atriz Bárbara Paz, com roteiro do dramaturgo Luis Alberto de Abreu. Uma história que já ganhou outros formatos, como livros, o documentário “Três Irmãos de Sangue”, um filme para Betinho e outro para Henfil, e no ano que vem outro documentário sobre Chico Mário deve ser lançado com direção de Sílvio Tendler.

Qual é o papel que você vê nas histórias contadas da sua família?

É compartilhar uma família que ama a vida, que sabe que a vida é curta, que a gente tem que viver a plenitude do que fizer, fazer o que a gente gosta, batalhar, ajudar o próximo e ao mesmo tempo valorizar a liberdade do pensar, do refletir. Tem o lado humano, de que eles simplesmente gostavam muito da cultura brasileira, de resgatar a vida e a obra deles. Volta e meia eu passo o filme deles e faço um debate para jovens, e é muito bacana quando um menino de 13 anos fala assim “Eu não tinha vontade nenhuma de cantar o hino nacional porque o Brasil não atende a mim e à minha família, passamos necessidades, mas vendo esse filme eu posso repensar isso porque o Brasil somos nós”, então essa reflexão de que nós somos uma nação muito interessante é um recado deles, que nós temos uma cultura incrível.

De que forma a preservação dessa memórias mexe com você?

Eu me sinto muito feliz de ter contribuído mudando as vidas de algumas pessoas e salvado parte do acervo da nossa memória. Durante o documentário “Três Irmãos de Sangue”, por exemplo, a diretora resgatou a filmagem da volta do Betinho em uma fita mofada na TV Globo. E é um filme inspirador para quem estiver na inércia porque com eles não teve tempo ruim, não se lamentando, iam à luta. E há um lado afetivo, meu pai morreu em 88 e até hoje ele é tão presente para mim, ele me acompanha musicalmente, é muito bacana trabalhar a perda dessa forma. Uma forma de ser imortal, pra gente que tem medo da morte, é por meio da arte. Há quanto tempo Vivaldi está aí, Ravel? Filho e música. E agora eu tenho gêmeos, então eu estou bem (risos).

O espetáculo “Consanguíneos” utiliza cartas escritas por eles, com música composta por seu pai, e também endereçadas por amigos e parentes, e simula uma correspondência atual. Como você se lembra daquela época e como acredita que os três encarariam os dias de hoje?

Henfil ia fazer os desenhos dele e meter o pau, papai ia fazer música certamente e o Betinho ia mobilizar as pessoas e contar o que aconteceu na história, o que ele viveu na história, como ele fazia abertamente. Eles fariam isso sempre de uma forma inteligente, não de confronto, de briga ou estupidez. Eles se davam muito bem; quando discutiam, o faziam de uma forma saudável, mesmo quando não tinham pontos em comum. Acho que isso é uma aprendizado para hoje. Eram pessoas muito sensatas, e eu tento seguir nessa linha, fazendo a minha parte com a arte. Acho que eles ficariam chateados com os comentários de que aquele não foi um período difícil para o Brasil, para os jovens, que lutaram pela liberdade, pela democracia. O movimento estudantil era um sonho de uma juventude de buscar, contestar, refletir, o que não se podia naquele momento. Eles já tinham uma limitação por causa da hemofilia, não queriam mais uma limitação política. No movimento estudantil eles encontraram esse caminho, principalmente o Betinho, através da Ação Popular, que não era uma ação guerrilheira, eram simplesmente jovens que queriam refletir e não aceitar a imposição de uma ideia só. É importante destacar o que ocorreu com o Betinho, que foi exilado junto com tantos outros do seu próprio país. Lembro que a gente se perguntava onde estava o Betinho. Betinho estava fora, não podia voltar para o Brasil porque ele pensa o contrário do regime, tinha que fugir senão iriam pegá-lo, se o pegarem ele iria morrer porque sendo hemofílico não sobreviveria a uma tortura.Maurício Vieira

Ele também esteve por trás do documentário 'Três Irmãos de Sangue", lançado em 2006  

Ao que você se refere quando fala em afetividade cultural de Minas Gerais?

Quando eu vim morar aqui em Belo Horizonte, na época em que trabalhei na Orquestra Filarmônica, eu vi um público muito mais ávido e mais cheio do que no Rio de Janeiro. Todos os eventos têm público. E eu fiquei pensando por que funciona aqui e no Rio de Janeiro não? E uma das conclusões a que eu cheguei é que aqui existem grupos-chave há mais de 30 anos formando pessoas, seres humanos, não só artistas, alguns viram artistas, outros, não. O grupo Galpão, o grupo Corpo, o Cefart, da Fundação Clóvis Salgado, a própria orquestra, a Fundação de Educação Artística lá com a Berenice (Menegale) que tem mais de 80 anos e continua dando aula, Giramundo, o maior grupo de bonecos do Brasil e uma referência mundial, o Uakti... Essas pessoas não fizeram só eventos, shows, peças, elas formaram, têm oficinas, por isso eu acho que o público mineiro participa ativamente, não só recebendo espetáculos, mas entranhando através dessas oficinas. Esse eu acho que é o diferencial de Minas, são grupos coesos que formam pessoas há mais de 30 anos.

No documentário “Três Irmãos de Sangue”, que teve um processo de produção de 4 anos e do qual você participou de todas as entrevistas, a última fala do escritor Afonso Romano Sant’Anna faz analogia com castores que constroem diques que demoram 200 anos para ficar prontos e nenhum castor vive para ver o trabalho pronto. É assim que você também enxerga o legado do que ele chama dessa “a reduzida família Brasil” de começar a construir um dique que outros devem tocar pra frente?

É exatamente isso que eu penso! Talvez eu não esteja vivo para ver o que eu sonho, que é um Brasil visitado por 30 milhões de pessoas para conhecer a experiência musical que eu acho que o Brasil merece. Porque é um país em que você vai a Pernambuco e dança Maracatu, vai ao Sul de dança Chamamé, vem aqui ouve um clube da Esquina ou um Tizumba. Mas estou fazendo minha parte. Falta os brasileiros enxergarem e investirem mais nisso. Eu acho que a cultura e o turismo deveriam ser melhor trabalhados. Eu que morei na Espanha, o turismo salvou a Espanha da crise, com os museus. E a gente tem isso. O consumo da cultura faz bem e gera recurso para o Estado, então eu acho que o investimento na cultura, inclusive o turismo cultural, deveria triplicar porque gera retorno três vezes maior para o próprio Estado, e a nossa cultura é internacional, não é nacional. Os japoneses são doidos com a cultura brasileira, a maior bilheteria em um ano lá foi João Gilberto. A nossa música é idolatrada no mundo inteiro.Arquivo pessoal

As irmãs Tanda, Wanda, Zilah Spósito e Glória (de pé), o caçula Chico Mário, a mãe dona Maria, e os irmãos Betinho, Filomena e Henfil (sentados)

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