Transformação pela arte e pelo gesto: Grace Passô fala sobre a cultura, racismo e teatro político

Vanessa Perroni
vperroni@hojeemdia.com.br
06/11/2016 às 15:55.
Atualizado em 15/11/2021 às 21:32
 (Lucas Prates)

(Lucas Prates)

A necessidade de dar voz às próprias ideologias e de não reverberar preconceitos e visões que não lhe cabem serve como espécie de mola propulsora para os trabalhos da artista mineira Grace Passô. Dona de um talento balizado pela crítica e que vai da interpretação à dramaturgia, ela vive bem no estilo “tudo/ao mesmo tempo/agora”. “Esse ano estive mais na interpretação”, comenta Grace, que recentemente circulou com a peça “Vaga Carne”, parte do projeto Grãos da Imagem, reunião de peças em torno de temas identitários, e que já prepara livro com o texto do espetáculo. 

Não bastasse, no próximo ano ela também estreia um espetáculo com a Companhia Brasileira de Teatro, com a qual fez o espetáculo “Krum”. O trabalho será uma coprodução Brasil/Alemanhã. Uma das fundadoras do grupo Espanca!, de Belo Horizonte, Grace Passô conversou com o Hoje em Dia sobre assuntos como racismo, cultura na capital mineira e teatro político.

“Nós vivemos em regime de urgência. Um tempo de transformações muito aceleradas. Isso é perceptível também nas artes cênicas. Você vê grupos pensando sobre temas que estão em voga como a negritude e as relacionadas ao gênero”

Você defende um teatro genuinamente brasileiro. O que o caracteriza?
Essa pergunta é difícil de responder, mas uma primeira coisa que caracteriza o teatro brasileiro é a forma de produção. De um modo geral falo do teatro do qual faço parte. As companhias no Brasil representam nichos de resistência mesmo em uma lógica mercadológica. Acho que isso é o que mais define. São esses coletivos e os ajuntamentos de artistas de teatro que buscam uma conversa com o poder público para criar políticas mais consistentes. Esteticamente, existe uma diversidade muito grande, e quando você viaja pelo Brasil vê que essa diversidade é feroz. É tão difícil definir o que é o teatro brasileiro como é difícil definir o que é o Brasil. Em cada parte do país os artistas sobrevivem e vivem de formas diferentes com o teatro. 

Como foi a decisão de sair do Espanca!? 
Fique no grupo durante 10 anos. É um projeto importante na minha vida e foi um período de um nítido amadurecimento particular em relação ao teatro. Ainda me apresento com o grupo e viajo com parte do repertório. O processo de saída foi muito natural. Não foi um desejo de saída para desenvolver projetos particulares, porque mesmo dentro do Espanca! eu já desenvolvia trabalhos com outros coletivos. Minha vida continua assim, ligada sempre às mesmas turmas do teatro brasileiro. Foi um processo natural de reconhecimento, em um determinado momento, de que funcionaríamos melhor com certa distância. Tanto o próprio grupo quanto eu. Isso é algo recorrente com muitos artistas. Isso ia arejar as nossas produções.Lucas Prates 

O grupo (Espanca!) teve rápido reconhecimento e conquistou alguns prêmios. Isso pode viciar o olhar de quem está em um processo de amadurecimento do trabalho?
Pode. Você pode fazer um trabalho quando está começando um grupo e esse trabalho ser muito reconhecido. “Por Elise” foi uma loucura. Isso é um grande privilégio porque é muito difícil circular com os espetáculos, mesmo estando na região Sudeste e em uma capital. A dificuldade de começar com uma peça muito reconhecida é que isso pode minar o amadurecimento artístico. Isso pode desacelerar um processo de pesquisa do coletivo. Um grupo ou um artista precisa de tempo para entender e elaborar um pensamento mais profundo sobre o que faz. Desde o início tínhamos consciência disso. O que buscamos foi continuar a fazer pontes, estabelecer parcerias e aprofundar as pesquisas, ter coragem de inovar e não repetir determinados procedimentos que deram muito certo. Ou seja, teve muita preocupação em continuar em movimento.

As oportunidades para os artistas e criadores negros ainda são limitadas?
Sim, ainda são limitadas. Não tenho dúvida que, de alguma forma, consciente e inconsciente, em um determinado momento da minha vida a opção de criar uma companhia, os próprios textos, dirigir os trabalhos e abraçar a concepção dos meus projetos foi e é uma forma de sobrevivência ao racismo brasileiro. Isso porque existe para as artistas negras brasileiras diariamente a necessidade de se comprovar uma série de coisas. Não só para si mesma, mas para o outro, que você é bonita, inteligente, competente. Uma forma de sobreviver a toda a elaboração de uma estética que é sem dúvida nenhuma de uma elite branca brasileira. Não tenho dúvida de que eu significo uma porção de coisas da nossa sociedade hoje, e posso dizer que estou em um lugar privilegiado. Ser uma artista negra do teatro brasileiro...é quase impossível você não ter batalhado muito e ter passado por milhares de coisas. Você inevitavelmente é uma pessoa que luta contra uma certa maré. Eu busco fazer trabalhos que sejam necessários de serem vistos e ouvidos. De ser uma artista necessária. 

“Vejo uma cena realmente diversa, pulsante e que não está concentrada em apenas uma região da cidade, mas em muitos lugares de Belo Horizonte com iniciativas muito potentes”

 omo você percebe o teatro em BH atualmente? Está mais pulverizado?
Vejo um teatro mais pulsante. Belo Horizonte é reconhecida pela consistência dos coletivos que nascem aqui. Obviamente, temos uma referência fundamental em teatro brasileiro que é o grupo Galpão. Vejo uma cena realmente diversa e que não está concentrada em apenas uma região da cidade. Projetos extremamente originais e iniciativas mais potentes que partem de grupos e companhias e não de grandes instituições. Partem de artistas locais. O teatro local segue numa luta contínua pelo reconhecimento na esfera pública. Do teatro como bem simbólico e não só necessariamente como mercadoria. Essa luta é árdua, tem a ver com gestões da prefeitura e do governo do Estado. Fico triste em ver uma série de espaços públicos e teatros públicos, e também privados que de certa forma viram patrimônio local, que são sucateados, subutilizados ou que não estão atendendo a velocidade das criações locais. As políticas para o teatro da cidade ainda estão muito aquém da velocidade que os artistas criam. Existe uma conversa com a comunidade artística local ainda muito menor do que se deveria. Mas acho que continuamos vivendo de teatro e sobrevivendo a tudo isso por meio de iniciativas dos artistas locais.Lucas Prates 

A arte enquanto política vem aparecendo de forma cada vez mais potente?
Muito se fala de que toda arte é política e não tenho dúvidas disso. A arte é algo político não só porque uma peça de teatro trata de assuntos políticos. Mas também pelo seu modo de produção e como se cria essa arte. A forma como se vive coletivamente para criar determinadas obras. Tudo isso deflagra a política diária entre as pessoas. É inevitável dizer que com todo o processo que a cidade vem vivendo há alguns anos surge também como resistência a certos lugares da política local. O carnaval da cidade significa muito isso. Acabou virando a bandeira dos novos tempos da arte local, em que a noção do que significa o espaço público se transformou completamente. Os trabalhos artísticos começam a agregar esses pensamentos. Tudo que ferve na cidade começa obviamente a fazer parte dos trabalhos. A gente vive em regime de urgência. Um tempo de transformações muito aceleradas. A cena é mais diversa. Você vê questões que estão muito em voga, como a negritude brasileira e as relacionadas ao gênero muito recorrentes nas obras. Então, acho sim que temos feito uma arte mais politizada.

“Me preocupo em não ser um instrumento de repercussão do racismo, mesmo que de forma sutil. O racismo repercute de formas múltiplas. Ele é um camaleão complexo”

Qual é o tempo, o lugar onde vive e suas urgências hoje?
Vivo num vulcão que é o Brasil, país que é puro encantamento e barbárie. Lugar tão desigual que só nos resta estar sempre muito atentos, conscientes e politizados. Mas ao mesmo tempo tem coisas lindas acontecendo. É provável que há alguns anos nem você me perguntaria sobre a negritude. E talvez eu nem falaria também. Hoje existe uma porque existe uma pujança das militâncias que me transformam profundamente e me fazem uma pessoa mais consciente. A contradição disso tudo é o fato de vivermos novas ideologias e pensamentos que transformam a forma de ver o mundo, mas existe junto disso um desfile e uma ascensão de um pensamento retrógrado muito resistente a tudo isso e muito medroso. Urgente para mim é viver todos esses pensamentos, transformações e militâncias na ação e no gesto.

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por