“Tancredo foi o mais sábio dos políticos brasileiros”, diz Ronan Tito

Ricardo Rodrigues - Hoje em Dia
21/04/2014 às 07:43.
Atualizado em 18/11/2021 às 02:13
 (Flávio Tavares)

(Flávio Tavares)

“Tancredo Neves foi o político mais sábio dos últimos 50 anos. Não jogava para a assistência, tomava atitudes pouco simpáticas, mas corretas”, afirma o ex-senador do PMDB Ronan Tito, que faz 83 anos em agosto próximo. Político impulsivo, ele diz que aprendeu a admirar os homens que se pautam pela busca do equilíbrio, especialmente Tancredo e Ulisses Guimarães, que considera os arquitetos e artífices do processo de reencontro do Brasil com o regime democrático.   “Tive o privilégio de viver e conviver com ambos”, emenda o ex-secretário do Trabalho e Ação Social no governo de Tancredo Neves. O ex-governador morreu em 21 de abril de 1985, antes de tomar posse como presidente eleito pelo Colégio Eleitoral. Ronan foi líder do PMDB no Senado, membro da Executiva Nacional do PMDB e vice-presidente do Parlamento Latino-americano. “Tancredo e Ulisses foram excepcionais na política brasileira. O defeito dos dois era um só: o PSD, um de Minas e outro de São Paulo”.   Ronan lembra que Tancredo e Ulisses guiaram a luta do PMDB contra a ditadura. “Tentaram intrigá-los, mas isso nunca colou”, recorda o ex-senador, que ouviu de uma secretária do ex-governador: “Não fale do doutor Ulisses Guimarães perto do doutor Tancredo”. “Por que?”, indagou. “Os dois são irmãos siameses”, respondeu a moça.    Como era a relação de Tancredo e Ulisses? Ulisses nunca tomava uma decisão sem consultar Tancredo. Infelizmente, alguns no PMDB não obedeceram às ordens do doutor Ulisses e do doutor Tancredo. “Deve-se fidelidade à pátria e não aos detentores do poder”, propalou o paulista. “Não vamos nos dispersar”, apelou o mineiro. O PMDB tem cheiro de povo, adquiriu essa capacidade de se revigorar no MDB, lutando contra a ditadura militar. Alguns o traíram, outros o usaram como escada. Mas ele continua.    Como o senhor vê os partidos hoje? A maravilha da democracia é a alternância do poder. Mas os partidos hoje transformaram a política num grande balcão de negócios.    Qual a imagem que o senhor guarda de Tancredo Neves?  Tancredo sabia que o Brasil não precisava de heróis ou mártires, carecia de políticos capazes de sepultar o regime autoritário sem abrir feridas que poderiam ser transformadas em fraturas impossíveis de serem curadas. Era um homem culto, lia muito, os livros certos. Tinha uma formação intelectual fincada nos clássicos franceses. Eu conheci de perto o homem, a figura humana. 
  Quando se absteve de votar no marechal Castelo Branco, o único do PSD, ele foi flagrado por um colega no Parlamento: “mas o senhor votou em branco!” E Tancredo respondeu: “esse povo não lê”. Castelo era culto, mas leu os livros errados. 
  Nas Diretas Já, Tancredo Neves me ligava pedindo que estivesse às 7 horas da manhã no aeroporto. Eu era o maleiro dele, com muito orgulho. Tancredo me disse uma vez: “ô, moço, política é para quem tem mais de 18 anos, de política”. De política, ele sabia tudo.
  A figura de Tancredo Neves ficou um pouco esmaecida na cúpula do PMDB, sobretudo porque Ulisses Guimarães era um grande orador.    E sobre Ulisses Guimarães, quais são suas lembranças? Ulisses foi professor de Latim por 15 anos, vinha de família pobre, mas tinha erudição extraordinária. Os discursos importantes ele escrevia em Latim e vertia para o português. Dizia que o Latim é língua morta. As palavras latinas não sofrem erosão. O significado delas é o mesmo há 500 anos. Tinha a coragem dos que se consideram amparados pelo próprio ideal, e caminham na vanguarda da luta democrática preparando o terreno para novas semeaduras. Só tivemos a Constituição da República em 1988 por causa dele. Nunca aprovamos uma alínea sequer que não fosse com o doutor Ulisses à frente. Quando ele saía do plenário, o Congresso parecia que era constituído de colegiais. Ele chegava e impunha, com a voz tonitruante: “vamos votar, vamos votar”. Fazíamos o que o doutor Ulisses ordenava    Qual a sua avaliação da Constituição de 1988? Ela não transformou a água em vinho, não ressuscitou os mortos, não transformou a terra em paraíso. Ela estabeleceu os alicerces de uma nova ordem democrática e descortinou novos horizontes para a caminhada do povo brasileiro. Com a notável evolução das tecnologias da informação e da comunicação, a essência da Constituição Cidadã pode chegar ao coração dos jovens, a quem cabe agora a responsabilidade de construir a Nação justa, soberana e solidária que atende pelo nome de Brasil.   Que tipo de lembranças o senhor tem daquela época? No discurso de virada da primeira para a segunda etapa da Constituição, o então presidente Sarney disse que fazia-se a Constituição da ingovernabilidade. Num dia no Congresso, Ulisses disparou: “nosso poeta não é Camões, nosso poeta é Fernando Pessoa. Enquanto íamos para a luta, o velho do Restelo ficava tomando caldo verde e lançando imprecações sobre nós em nossa caminhada”. Toca o telefone, o deputado Ibsen Pinheiro atendeu e veio rindo. “O que foi, Ibsen?”, perguntou Ulisses. Espirituoso e brincalhão, o gaúcho respondeu: “Era o Sarney ao telefone, ele disse ao senhor que velho do Restelo era a pqp!”.   O senhor teve uma convivência íntima com Ulisses Guimarães. Deve ter muitos casos para contar. Numa reunião do Parlamento em Sevilha, na Espanha, convidei o doutor Ulisses para me acompanhar. Ele pagou a passagem de dona Mora, sua mulher. Fomos a um restaurante e pedi a ele que escolhesse o vinho. Dona Mora disse: “Ulisses não sabe nada de vinho, só pensa em política”. O timoneiro pediu uma garrafa de Vega Cecilia, que costumava beber em casa do senador Severo Gomes. Era o melhor da Espanha.    Ulisses se ressentiu com os companheiros que não queriam a candidatura dele? Quando lançamos Ulisses Guimarães candidato a presidente da República, todos os governadores do PMDB eram pré-candidatos. Em uma reunião na casa dele, os governadores pressionavam para que renunciasse da candidatura. Ulisses pediu a dona Mora: “sirva um café”. Ela retrucou: “serve uísque, que pode ser comprado em qualquer supermercado. Café você faz em casa e você só serve para os amigos”, disse ela. 
  Os governadores estavam traindo Ulisses. Foi barrado por todos eles, que elegeram o Collor (governador de Alagoas pelo PMDB, em 1986, fundou o PRN para disputar o Planalto, em 1989).    Como o senhor avalia a eleição de Fernando Collor naquele momento da história do país? O Collor foi eleito pelo doutor Roberto Marinho e foi tirado do poder pelo doutor Roberto Marinho. O dono das Organizações Globo era um patriota, um homem irretocável, queria o bem do Brasil. Roberto Marinho deixou de apoiar Ulisses depois de indagar: “quem vai ser o ministro da Fazenda: Severo Gomes ou Fernando Gasparian?” Collor abriu a economia do Brasil.   E sobre Teotônio Vilela, outro companheiro político daquela época, o que o senhor se lembra? Fui um felizardo. Andei Minas Gerais com o senador Teotônio Vilela (AL), visitei as prisões com o comandante da anistia aos presos políticos no país.    O senhor tem um caso curioso sobre Juscelino Kubitschek, como foi a história?  JK era candidato a governador, e eu, estudante em Uberaba. Os alunos preparavam uma grande vaia para recepcionar JK, mas este deixou atônito a estudantada com a declaração: “Eu, quando sobrevoava esta cidade, tive a impressão de sobrevoar Chicago”. À época, Chicago era o centro do agronegócio nos Estados Unidos e no mundo. Compará-la a Uberaba foi lance de mestre.   Presidencialismo ou parlamentarismo? Pessoalmente continuo vendo no parlamentarismo a saída institucional mais eficaz para promovermos as adequações de nossa Carta Constitucional aos tempos atuais. Não tenho simpatia pelo presidencialismo, embora reconheça que ele tem força, significado e tradição na política latino-americana. Considero-o por demais imperialista e autoritário. E agora ele tem, no Brasil, um grande defeito que afeta as instituições democráticas: a reeleição. No presidencialismo a crise é o menu cotidiano da política. No parlamentarismo as crises são superadas com a simples troca dos governantes. Abarcar e superar a crise são as principais características do parlamentarismo. Um dos graves erros do presidencialismo brasileiro é ter assimilado, de forma equivocada, a medida provisória que é própria do parlamentarismo.    Como o senhor avalia o uso de medidas provisórias pelos governantes? A medida provisória rejeitada no sistema parlamentarista de governo provoca a queda do gabinete e o risco iminente de derrota evita o abuso na utilização da mesma. No Brasil as medidas provisórias são apresentadas, reapresentadas e desfiguradas sem constrangimento pelo Poder Executivo. 
  Na democracia, a tripartição de poderes é uma tentativa de estabelecer limites entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, assegurando o funcionamento e o equilíbrio das instituições. No presidencialismo, com a medida provisória, o Parlamento e o Judiciário valem menos, muito menos.    O senhor é contra a reeleição? A reeleição para cargos do Poder Executivo é uma tragédia. Já é possível constatar que a reeleição contribui fortemente para a institucionalização da corrupção eleitoral. De quebra, conduz o processo eleitoral para os tribunais, que também não estão imunes ao vírus da corrupção. A reeleição para o Executivo deixa a sensação de que o presidente da República, governador e prefeito são os salvadores da pátria. O custo político da reeleição é alto, e afeta perigosamente a estabilidade das instituições públicas porque os interesses consolidados em torno dos que desfrutam a reeleição atuam sem limites. Fortalecer o Parlamento e acabar com a reeleição e as medidas provisórias são condições fundamentais para aperfeiçoar a Constituição de 1988. Fortalecer o Parlamento é transformá-lo na caixa de ressonância das aspirações populares.    E as emendas parlamentares? A emenda parlamentar, que gera despesa para os cofres públicos, é outro perigoso desvirtuamento do papel institucional do Parlamento. A emenda parlamentar é hoje o passaporte para a reeleição dos detentores do mandato. O Legislativo se submete ao Executivo para assegurar a reeleição de seus componentes.   Qual a sua opinião sobre a reforma política? Os partidos transformaram a política num grande balcão de negócios. A reforma política é uma necessidade. Para acabar com a imoralidade das legendas de aluguel existe a cláusula de barreira. Nenhum partido sério, enraizado na sociedade, precisa temê-la. Sou defensor do voto distrital, começando pelo voto distrital misto para chegarmos ao voto distrital puro que considero a forma mais adequada e capaz de traduzir o sentimento, o desejo e a crítica do eleitor.    Como o senhor avalia o PSDB, um partido criado por ex-peemedebistas? Considero a operação bem sucedida dos tucanos o maior estelionato político da história partidária do Brasil. Eles se elegeram com os votos, as bandeiras e as vitórias do PMDB. Um caso notável de oportunismo, porque se diziam parlamentaristas para sair do PMDB e fundar o PSDB. Ao caminhar, esqueceram o ideal social democrata e capitanearam a luta pela reeleição que tantos males trouxe ao Brasil. 
  O PMDB conduziu o processo de reordenamento institucional do país, tendo o deputado Ulisses Guimarães na presidência da Assembleia Nacional Constituinte. Mário Covas foi o líder do PMDB na Constituinte e o responsável pela escolha dos relatores das comissões temáticas. Durante o processo constituinte, Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso, José Serra, João Pimenta da Veiga e outros parlamentares – eleitos com os votos do PMDB – o deixaram para fundar o PSDB.   E os outros partidos no Brasil? O PMDB, assaltado pelo oportunismo, deixou de ser a legenda dos autênticos e moderados para se tornar a praça pública dos pragmáticos. O PSDB é uma grife bem sucedida e as novas gerações do PT em quase nada diferem das demais agremiações que transformaram a política num grande balcão de negócios. Estamos diante da formação de uma nova casta em todos os partidos. É uma pena? Não. É uma tragédia. Mas o povo, sabiamente, parece que descobriu a força que tem.    Saudades do parlamento? Não sinto saudades da vida pública. De vez em quando vou ao Senado, para ver amigos e pegar livros na biblioteca da Casa.

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