'Teremos de prestar contas para a Humanidade', diz arqueólogo 'pai' de Luzia

Estadão Conteúdo
03/09/2018 às 14:06.
Atualizado em 10/11/2021 às 02:15
 (Reprodução / Youtube)

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"Estou emocionalmente extremamente abalado", afirmou nesta segunda-feira (3) o arqueólogo e antropólogo Walter Neves, que é considerado o pai de Luzia - o fóssil humano mais antigo já encontrado nas Américas, com cerca de 12 mil anos, e que muito provavelmente foi perdido no incêndio do Museu Nacional, no Rio. "Essa era uma tragédia anunciada; o poder público abandonou completamente o museu há décadas." O antropólogo classificou o incêndio de uma "tragédia para a Humanidade. "E nós teremos de prestar contas disso para a Humanidade. Será sempre uma mancha enorme para o Brasil no mundo inteiro."

Coordenador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), Neves não foi o responsável pelo resgate do esqueleto, na década de 70, na região de Lagoa Santa, nos arredores de Belo Horizonte. Mas graças a seus estudos foi possível reformular a teoria de ocupação humana nas Américas durante a pré-história. Segundo Neves, pelo menos outros 200 esqueletos do extinto povo de caçadores-coletores, ao qual pertenceu Luzia, também estavam na reserva técnica do museu e provavelmente também se perderam. Os fósseis são datados de 8 mil a 10 mil anos.

O modelo dos dois componentes biológicos postulado por Neves sustenta que o continente americano foi colonizado por duas levas distintas de Homo sapiens, vindas da Ásia. A primeira onda migratória teria ocorrido há pelo menos 14 mil anos e era composta de indivíduos parecidos com Luzia, com traços semelhantes aos dos atuais negros africanos e aborígines australianos. Este grupo, no entanto, não teria deixado descendentes. Uma segunda leva migratória teria chegado há 12 mil anos e seus membros apresentavam um tipo físico característico dos asiáticos, dos quais são descendentes os índios atuais.

"Estudar Luzia revelou sua importância para o povoamento das Américas e também que não houve apenas uma onda migratória, mas duas", afirmou Neves. "Em termos de primeiros americanos, essa é a coleção mais antiga, são mais de 200 esqueletos, todos de Lagoa Santa. Vendo pela TV é complicado saber, mas acho remota a possibilidade de esse material ter sobrevivido."

Foi Neves quem batizou o fóssil de Luzia - numa alusão a Lucy, um fóssil de australopitecos de 3,2 milhões de anos descoberto no Deserto de Afar, na Etiópia, e que é considerado um dos mais antigos hominídeos de que se tem notícia. Ele se encontra hoje no Museu Nacional, em Adis Abeba. O fóssil, no entanto, é guardado em condições de segurança e apenas uma réplica fica em exposição.

"Para mim, a maior tragédia, de longe, é a perda das coleções", diz Neves. "Em muitos países, por incrível que pareça, até na Etiópia, coleções únicas, como por exemplo a Luzia, são consideradas questão de Estado: isso quer dizer que elas são mantidas em situação ideal de preservação e, para estudá-la, é preciso pedir permissão diretamente ao presidente da República."

Neves frisou, no entanto, que seria "estreito", da parte dele, salientar somente a perda de Luzia.

"A questão das coleções é muito cruel, porque ou você tem ou não vai ter nunca mais", disse Neves, se referindo especificamente às coleções egípcias e gregas, as maiores da América Latina, trazidas em parte por Dom João VI, em 1808, e adquiridas posteriormente por Dom Pedro II. "Esse é um material que nunca mais vamos ter, mesmo que a gente vá escavar nesses países, as leis nacionais não permitem que as peças saiam. Então, nesse caso, nunca mais é para sempre, nunca mais vamos ter condições de fazer pesquisas sobre Egito e Grécia com base em coleções de museus no Brasil."

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