Você sabe o que é um chan? Conheça o submundo dos fóruns de ódio na deep web

Cinthya Oliveira
19/03/2019 às 16:57.
Atualizado em 05/09/2021 às 17:52
Órgãos de segurança aumentaram a obtenção de conversas de pessoas investigadas por meio de programas hackers, avalia senador Alessandro Vieira (MDB-SE) (Divulgação)

Órgãos de segurança aumentaram a obtenção de conversas de pessoas investigadas por meio de programas hackers, avalia senador Alessandro Vieira (MDB-SE) (Divulgação)

O massacre de Suzano, no dia 12 deste mês, quando dois ex-alunos de uma escola mataram oito pessoas e se suicidaram, colocou em evidência um ambiente cibernético até então desconhecimento da maioria: os chans, fóruns de debates em que pessoas anônimas publicam textos e imagens.

Os dois assassinos da Escola Raul Brasil participaram do chan mais famoso do país, o Dogolachan. Ao longo dos últimos dias, foi neste espaço que vários internautas anônimos enalteceram o ataque em Suzano – da mesma forma que fizeram há oito anos, após o massacre de Realengo, no Rio de Janeiro, quando 12 pessoas foram mortas por um atirador.

No chan, abreviação da palavra inglesa channel (canal), o conteúdo antigo é automaticamente deletado. Nem todos os chans são de conteúdo de ódio, mas esse tipo de fórum acabou sendo usado por pessoas violentas e preconceituosas por garantir o anonimato dos usuários.

O conteúdo trocado nesse chan é tão violento que seu criador, Marcelo Valle Silveira Mello, foi condenado a 41 anos, 6 meses e 20 dias de prisão, por racismo, ameaça, incitação ao crime e terrorismo por meio da internet.

Além dos assassinos das escolas de Realengo e Suzano, muitos outros usuários do Dogolachan já demonstraram intenção em realizar atentados em espaços públicos de diversas cidades, inclusive Belo Horizonte. Em 2016, um jovem usou a plataforma para dizer que gostaria de matar alunos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG com uma bomba. Foram feitos prints das postagens do internauta anônimo (a data foi alterada pelos gerentes do chan para confundir possíveis investigações).  Veja: N/A / N/A

O caso foi levado para a administração da UFMG, que acionou a Polícia Federal.

Para não atrapalhar as investigações e não incentivar jovens a buscar a deep web, Polícia Federal e Polícia Civil de Minas Gerais não comentam casos que envolvam ameaças na deep web. 

Transtornos

De acordo com Julia Khoury, psiquiatra da Faculdade de Medicina da UFMG, os jovens que compartilham conteúdos de ódio em chans como esse tendem a ter distúrbios psiquiátricos (como depressão, ansiedade, dificuldade em se relacionar, fobia social) ou transtornos de conduta (matam animais, agridem pessoas e podem ser diagnosticadas posteriormente como psicopatas).

“Eles usam a internet para fugir da realidade ou encontrar pessoas com um tipo de pensamento parecido. Ali vivem uma sensação de pertencimento, encontrando pessoas que estimulam atitudes mais violentas”, explica a psiquiatra. Segundo ela, o anonimato da deep web permite que internautas se sintam à vontade para expressar opiniões que não seriam aceitas pela sociedade.

Julia Khoury explica ainda por que os chans atraem majoritariamente os usuários masculinos. “Estatisticamente, os homens costumam ter traços de agressividade e impulsividade, tanto que os transtornos de conduta são muito mais comuns em homens”, explica a médica. “Há uma base biológica e social nessa constatação. A biológica é porque a testosterona estimula um comportamento mais agressivo. A social está no aprendizado que o homem tem, ao longo dos anos, de que tem o direito de ser mais agressivo para demonstrar virilidade”.

Segundo ela, cabe aos pais verificar se os filhos navegam pela deep web e se apresentam mudança de comportamento. Veja aqui como saber se seu filho está acessando conteúdo inadequado na internet profunda.

Experiência

Doutorando em História pela UFMG, Igor Tadeu Rocha tem utilizado grupos virtuais fechados de extremistas como fonte para pesquisa sobre fundamentalismo religioso. Segundo ele, jovens com pensamentos violentos e conservadores também utilizam ferramentas de mídias tradicionais (como WhatsApp e Facebook) para compartilhar conteúdos inadequados. 

Print da conversa entre usuários do Dogolachan após o massacre de Suzano; eles temem uma investigação da polícia

“São meninos que ou estão no auge da puberdade ou passaram dos 20 ainda virgens, que sofrem ou sofreram bullying na escola, que são e foram tratados como esquisitos. Daí, em conflito, são convidados a fazer parte de uma galera que diz que todas as frustrações deles são culpa do 'mundo moderno'”, explica o pesquisador, que publicou um texto sobre o assunto no site Justificando.

Como pesquisador e educador, Igor acredita que o diálogo é a melhor forma para se evitar que mais jovens continuem buscando conforto em grupos virtuais e chans violentos.

“Nesses grupos extremistas, os garotos apenas acham que os outros os levam a sério e dão a eles um pouco de sensação de pertencimento. Acho que faria diferença um diálogo. Antes um amigo, um familiar ou especialista conversar e tentar, de alguma forma, ajudár a lidar com certos problemas do que um anônimo na internet que vai passar contatos pra compra de armas”.

Um estudante da UFMG, que pediu para não ser identificado, compartilhou um texto numa rede social em que relatou sua experiência em grupos de interessados no tema Segunda Guerra Mundial durante a adolescência. Isso permitiu que se deparasse com vários jovens de tendência nazista. “Lembro que essa época foi a primeira vez que senti que tinha um grupo de amigos”, afirmou o estudante, reconhecendo que adolescentes tendem a se sentir acolhidos nesses espaços virtuais.

“Nesse grupo todos tinham graves problemas de autoestima e uma ideologia de extrema-direita serve para criar um sentimento de unidade e superioridade. Felizmente, acabei resolvendo minhas questões de autoestima, e muitos do grupo também, ao longo da adolescência, largaram completamente o neonazismo. Os que não conseguiram se aprofundaram mais na ideologia”, lembrou o estudante.

Responsabilidade criminal

Advogado especialista em crimes cibernéticos, Alexandre Atheniense explica que quem apresenta conteúdos de ódio (especialmente os que ofendem a honra de uma pessoa) em espaços da deep web podem ser processados criminalmente. “A deep web é um ambiente público, mesmo que tenha um acesso dificultado. Se a publicação for de conteúdo ilícito e houver identificação do agente, ele pode ser incriminado”, explica.

O advogado afirma ainda que a condenação do criador do Degolachan pode servir de jurisprudência para a condenação de outras pessoas que venham a ser acusadas por publicações violentas e de conteúdo de ódio. Ele lembra ainda que, caso um adolescente compartilhe ou consuma conteúdo pedófilo na internet, os pais podem ser responsabilizados criminalmente.

  

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