Turismo

Fé atrai turistas a Minas e rende boas histórias

Luciane Amaral
lamaral@hojeemdia.com.br
04/06/2022 às 07:00.
Atualizado em 04/06/2022 às 07:35

“Teimosia” de uma imagem de Cristo em voltar para uma colina fez comunidade construir no local o Santuário do Bom Jesus de Bacalhau, em Piranga (Divulgação)

“Teimosia” de uma imagem de Cristo em voltar para uma colina fez comunidade construir no local o Santuário do Bom Jesus de Bacalhau, em Piranga (Divulgação)

A devoção católica dos portugueses que colonizaram o Brasil deixou um legado arquitetônico e cultural marcante. Em Minas, quem visita as igrejas históricas, mais do que se encantar com a beleza e a genialidade do barroco mineiro, conhece tradições religiosas seculares e se surpreende com “causos” que são passados de geração a geração.

E muitas histórias estão longe dos roteiros religiosos mais tradicionais, como Ouro Preto, Mariana e São João del-Rei. Um exemplo está em Piranga, na Zona da Mata, localidade escolhida pelo bandeirante João de Siqueira Afonso, junto com um grupo de paulistas, para montar uma base de operações, em busca de minerais preciosos, já que a exploração de ouro era a principal atividade econômica colonial em Minas. 

Um dos tesouros históricos do município é o distrito de Santo Antônio do Pirapetinga, popularmente conhecido como Bacalhau. O nome do lugar é atribuído a José Bacalhau, o primeiro morador.
O acesso, a 11 km da cidade, é por uma estradinha de terra, que serpenteia pela serra, margeando o rio Pirapetinga e corta diversas fazendas antigas. No alto do morro, o visitante se surpreende com um imponente santuário, em estilo bandeirista.

Tombado pelo Instituto Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1996, o Santuário do Senhor do Bom Jesus de Matosinhos tem uma história curiosa. Elisa Dias, moradora do vilarejo, é quem costuma receber os turistas para falar dos mistérios que rondam o local. 

Reza a lenda que no alto do morro, certo dia apareceu a imagem do Senhor Bom Jesus, quase em tamanho natural, esculpido em madeira. Os fiéis a levaram para a única igreja do povoado. “Na manhã seguinte, o Cristo havia sumido e reapareceu no mesmo lugar. Levado novamente para a igreja, tornou a sumir e a voltar para a colina”, conta Eliza. 

“Como isso se repetiu por diversas vezes, os moradores entenderam que o Cristo queria ficar lá em cima e decidiram construir uma igreja”. Mas não havia água. A imagem milagrosa teria feito surgir uma nascente no local e o templo pôde ser erguido. 

Santuário tornou-se local de peregrinação, onde muita gente ia para rezar pelos mortos da Guerra dos Emboabas. Nas laterais da igreja, há duas construções coloniais que recebem romeiros todo mês de agosto, há mais de 300 anos.

Réplica da imagem do Senhor Bom Jesus “encara” os fiéis; original fica na sala dos milagres, posicionada atrás da cópia (Divulgação)

Réplica da imagem do Senhor Bom Jesus “encara” os fiéis; original fica na sala dos milagres, posicionada atrás da cópia (Divulgação)

MAIS MISTÉRIOS

Os mistérios não param por aí. Em 1708, conta Luiz Helvécio Silva Araújo, prefeito de Piranga, houve uma violenta batalha da Guerra dos Emboabas, que resultou na morte de muita gente na região conhecida como Cotia, em uma emboscada. 

Conta-se que a imagem do Senhor Bom Jesus foi colocada na parte frontal superior do altar, para que pudesse ser contemplada pelos devotos durante as celebrações. “Mas o Cristo teimava em aparecer de costas para o público, sempre que era desvirada”, afirma o prefeito.

O jeito foi fazer uma réplica da imagem que foi colocada na capela. E a peça original foi disposta em uma sala dos milagres, na parte de trás do altar, voltada para Cotia, de onde pode, até hoje, velar pelos mortos da batalha. Outra curiosidade é que na imagem Jesus é vesgo: o olho direito mira para baixo, vigiando os fiéis, e o esquerdo olha para o Céu.

Santa ‘caiu do céu’ em Catas Altas da Noruega

Catas Altas da Noruega, na região Central, tem pouco mais de 3 mil habitantes e começou a ser povoada por volta de 1690, por bandeirantes que exploravam a Serra de Itaverava. Os aventureiros viviam de balançar na bateia o cascalho de córregos que desciam das serras, à “cata” das pepitas. As catas eram as lavras que não precisavam de escavações profundas.

O arraial ganhou a primeira igreja em 1726, que guarda, até hoje, a imagem portuguesa de São Gonçalo do Amarante, padroeiro da cidade e protetor das prostitutas. A Rua do Lava Pés, diante da matriz, tem o maior conjunto arquitetônico histórico da cidade, com 16 casarios coloniais.

Mas quem domina a devoção religiosa não é o padroeiro. Logo na entrada da cidade, o turista descobre as nuances de uma história inesperada. De braços abertos, uma imagem de Nossa Senhora das Graças recebe os visitantes, protegida pela réplica de um avião. 

O historiador Giovane Neiva explica que em 29 de julho de 1949, véspera do dia do padroeiro, o padre Luiz Gonzaga queria surpreender os fieis com uma imagem de Nossa Senhora das Graças, de quem era devoto. Mas o motorista que ia buscá-la em Conselheiro Lafaiete se esqueceu da encomenda.

O padre apelou à Nossa Senhora para ajudá-lo. Na mesma tarde, um avião da Companhia Itaú de Transportes Aéreos sobrevoou a cidade bem baixinho. A aeronave faria a rota entre o Rio de Janeiro, com escala na Pampulha, de onde seguiria para Belém, no Pará. Mas no caminho, houve uma pane e o jeito foi jogar fora parte da carga, para aliviar o peso e evitar a queda. 

A “chuva” de caixas e pacotes se espalhou pela cidade: geladeiras, rádios, sapatos, tapetes, fardos de tecido e três imagens de santos. No povoado de Lage, a 6 km do centro, dois lavradores encontraram um caixote quebrado, com a imagem intacta de Nossa Senhora das Graças, igual à que o padre tinha encomendado.

A igreja católica celebra o dia de Nossa Senhora das Graças em 27 de novembro. Mas, em Catas Altas da Noruega, a festa é em 29 de julho, dia em que a santa caiu do céu.

No dia seguinte, o piloto apareceu. E contou que tinha conseguido se salvar, chegando até a Pampulha com os tanques de combustível vazios. Quando soube da história da santa, fez questão de doá-la à cidade e o padre a consagrou como Nossa Senhora das Graças, a quem são atribuídos muitos milagres.

Em Catas Altas da Noruega, no local onde a imagem de Nossa Senhora das Graças caiu, foi construída uma gruta, que se tornou ponto de peregrinação. E há até um museu na cidade com objetos da carga recolhidos.

Casario bem preservado é um charme a mais na histórica Santana dos Montes; região reúne várias fazendas do período colonial (Divulgação)

Casario bem preservado é um charme a mais na histórica Santana dos Montes; região reúne várias fazendas do período colonial (Divulgação)

Além Disso

Quem passa pelo Centro Histórico de Santana dos Montes, na região Central, com 3,7 mil habitantes, tem a sensação de que ali o tempo passa devagar. A pracinha em frente à igreja de Santana, guarda um conjunto histórico que lembra uma cidade cenográfica. O local surgiu como um dos primeiros povoados da região, com foco na produção agrícola.

As primeiras referências à Igreja de Santana, padroeira, datam de 1726. O templo é do tipo nave em salão e guarda. Na capela-mor, a imagem de Santana Mestra, ensina a filha Maria, mãe de Jesus, a ler. A imagem portuguesa data da 2ª metade do século XVII, e é ladeada por outras duas do mesmo período: São Joaquim, pai de Maria, e São Sebastião. 

Nas laterais da Matriz e no teto há pinturas de Francisco Xavier Carneiro, que era da oficina de Aleijadinho. A capela-mor é mais lúgubre e lembra o sofrimento e a morte de Jesus; já a nave é mais clara e mostra a redenção do Senhor.

Uma curiosidade no destaque principal no teto da nave é a pintura de Cristo crucificado ao lado dos ladrões. A inscrição SPQR é uma citação romana que, em tradução livre, quer dizer “de acordo com o povo e o senado romano”, explica a historiadora, socióloga e escritora Ana Medina. O divertido é a interpretação que o povo da região deu à inscrição: “São Pedro quer rapadura”, conta Ana Medina.

A presidente da Associação dos Amigos de Santana dos Montes fala sobre outras peculiaridades da igreja. Parte do rico douramento da imagem de São Francisco da Sabedoria desapareceu, porque uma devota responsável pela manutenção da igreja lavava a peça com sabão. E um detalhe que ninguém sabe explicar é porque os olhos do santo têm cores diferentes e a peça nunca foi restaurada.

Medina fala sobre a dificuldade que enfrentou para obter autorização da comunidade para recuperar duas imagens em tamanho natural que estavam cheias de cupim. Na época houve uma grande resistência dos fieis que não queriam que o técnico visse as imagens sem roupas. Só que as imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores, usadas em procissões, são santos de roca, ou seja, por baixo das vestimentas não há corpo, apenas uma estrutura de madeira para dar sustentação às peças – não havia nada para ser desnudado.

Ficou curioso? Veja aqui outras informações sobre o Circuito Villas e Fazendas.

Para visitar Bacalhau, ligue para Onésimo da Silva Júnior, do Museu do Tropeiro:  (031) 9 9734-9428. No dia dos namorados a comunidade promove um Festival de Comida Mineira (dias 11 e 12/06), com culinária tropeira e quilombola. 

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