Túlio Mourão

Curador do Festival Tudo é Jazz quer mostrar que gênero pode e deve se encontrar com outras culturas

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com.br
Publicado em 18/07/2022 às 08:15.
Mourão integrou a banda Mutantes quando ela entrou numa fase de rock progressivo, já sem Rita Lee e Arnaldo Baptista. O disco “Tudo foi Feito pelo Sol” se tornou um clássico, elogiado por Kurt Cobain e Julian Lennon. (Maurício Vieira/Hoje em Dia)

Mourão integrou a banda Mutantes quando ela entrou numa fase de rock progressivo, já sem Rita Lee e Arnaldo Baptista. O disco “Tudo foi Feito pelo Sol” se tornou um clássico, elogiado por Kurt Cobain e Julian Lennon. (Maurício Vieira/Hoje em Dia)

O jazz em Minas tem residência fixa: Ouro Preto. Pelo menos foi assim desde 2002, quando Maria Alice Martins criou o festival “Tudo é Jazz” na cidade histórica. Palco de encontros memoráveis, o evento chega à capital em sua edição de número 20. A programação pode ser vista até o dia 30 deste mês, no Museu das Minas e do Metal, na Praça da Liberdade. Em agosto, o festival volta ao palco de origem, trazendo muitas novidades. Uma delas é dedicada a Frank Sinatra, em homenagem a Maria Alice, que faleceu em 2020, de Covid. A paixão da idealizadora é o que o curador Túlio Mourão tenta manter, mostrando que o jazz pode e deve se encontrar com outras culturas.

A extensão da programação para Belo Horizonte é uma consequên-cia natural da importância que o festival assumiu dentro do universo do jazz no país?
O “Tudo é Jazz” chega à 20ª edição se consolidando como algo significativo dentro do calendário cultural de Minas Gerais. E, ao mesmo tempo, chega demandando mais espaço e condições para poder se cumprir com as imensas possibilidades e potencialidades, entre elas a turística. Eu defendo que a grande vocação de Minas hoje é a qualidade. Acho que o Estado perde por não reconhecer isso vocacionalmente. Dentro dessa ótica, tenho certeza que a nossa gastronomia, a nossa moda, o nosso rock’n’roll, a nossa dança, entre outros, têm qualidade. É um traço que Minas precisa ter mais consciência e tratar disso de maneira mais institucional. O festival tem uma potencialidade imensa e, por isso, ele realmente merece ocupar mais espaço, com um trânsito mais fluido dentro da comunidade.

O festival retorna ao formato presencial, o primeiro deles sem Maria Alice Martins, criadora do “Tudo é Jazz” e falecida em 2020 de Covid. O que representa essa perda para o festival e para a cultura mineira?
É difícil dizer o que significa essa perda. Quando eu conheci a Maria Alice, ela era minha colega de Estadual Central e a música era o que nos unia. Falávamos das mesmas coisas, dos mesmos artistas. A gente sonhava viajar, encontrar os artistas. Sonhávamos grande e isso nos levou para uma realidade nas alturas também. E muito disso realizamos. Falo, por exemplo, do encontro, organizado por ela, em que no Royal Albert Hall regendo um coro de crianças ao lado da Sinfônica de Londres e que tinha ainda Milton Nascimento como protagonista. E quando me perguntam com que espírito a gente vai homenagear hoje a Maria Alice, eu digo que ela mesmo traçou esse “como” com a paixão. Buscamos os vestígios da paixão que ela deixou, vencendo dificuldades e rompendo barreiras.

E você está no Festival desde a segunda edição. Como foi esse começo?
A gente não tinha sequer o apoio da Secretaria de Cultura. Eu me encarreguei de procurar o Nascimento e Silva, que era o secretário na ocasião, e ouvi ele dizer que entendia a nossa motivação e importância do festival, mas que lá dentro lutava com a mentalidade de que não se conduza verbas públicas para a música estrangeira. Olha a coisa tacanha e medíocre como viam o jazz. Felizmente a Maria Alice e a equipe do festival venceu isso com muita paixão.

O ponto alto do festival continuará sendo Ouro Preto, com atrações como João Bosco, Cristovão Bastos, Madeleine Peiroux, entre outros. Como foi a composição dessa programação?
Além desses nomes, teremos Hugo Fattoruso, grande pianista e compositor uruguaio, que tem um projeto lindo que mistura jazz com candombe. Eu defendo que o melhor do jazz hoje é o encontro do jazz com diferentes etnias, gerações e culturas. Em outras edições, já exibimos um excelente jazz feito no leste europeu, por exemplo. A gente não poderia sonhar que haveria um jazz desta qualidade por lá. A interface do estilo com essas culturas diferentes tem surpreendido e enriquecido. Ao mesmo tempo, isso evidencia uma linha de ação da Maria Alice, que é entender o jazz como uma obra aberta, em transformação, em evolução. É esse espírito que nos norteia. Também acho importante a cena mineira contemporânea. Eu não paro de ficar encantado com o que escuto e vejo da geração de compositores e instrumentistas daqui. Eu considero que um dos traços mais vigorosos da produção cultural mineira é a música instrumental. É importante ter um consenso sobre isso para termos os desdobramentos que essa música precisa e merece.

Um capítulo importante dessa edição comemorativa será a homenagem a Frank Sinatra. Como se deu essa escolha?
A questão do Frank Sinatra tem um componente afetivo, que passa por uma predileção pessoal da dona Terezinha, mãe da Maria Alice. É um processo de homenagem indireta à criadora do festival também. A intenção nossa de prestigiá-lo no “Tudo é Jazz” se deve ao perfil artístico duplo. Além de ser o “the voice”, ele foi um ator de grande sucesso. Com essa dualidade, ele conseguiu trazer visibilidade para o jazz, ajudando a vencer barreiras sociais, raciais e etárias. Ele trouxe um público bastante dilatado, tanto dentro dos Estados Unidos quanto mundo afora. Não lhe faltam créditos para ter uma homenagem no jazz.

O jazz permeia muito da história da música mineira, não só a contemporânea, não é verdade?
Quando a gente tenta definir o que diferencia a música mineira, que geralmente é muito difícil de se explicar, gosto de usar uma frase do Toninho Horta, para quem a nossa melodia é montanhosa, atravessando altos e baixos. Segundo ele, o povo que vive na praia tem compassos mais curtos, com distâncias menores e delicados na escala. Acho essa explicação linda, poética. Eu prefiro dizer que os mineiros são excelentes para dosar misturas com sabedoria e bom gosto. É um caldo muito consistente, diversificado, onde cabe a música internacional, da tradição afro, que é muito presente em Minas, e religiosa, num estado que é profundamente católico. Além da música popular que é feita em outros estados.

A sua carreira foi muito pontuada por encontros com mineiros como Milton Nascimento, um de seus maiores parceiros. Qual foi a contribuição deles para a construção de seu trabalho?
Todas essas pessoas me marcaram. A minha música tem um pouco dessa vivência. Desde a minha infância, de onde eu trago a vivência com a música erudita. Teve uma época em que o meu ídolo era o Amilton Godói, do Zimbo Trio. Anos depois foi um prazer sem tamanho vê-lo gravando uma música minha e do Bituca. Depois eu quis tocar Beatles, que também exerceu uma influência enorme. (Teve ainda) O rock dos Mutantes. Tudo isso foi importante para a minha música. Eu costumo dizer que o músico brasileiro é sentenciado à diversidade. Profissionalmente, ele não pode se dar ao direito de ser só uma coisa. É uma característica do nosso mercado, em que temos que fazer um monte de coisa. Faço canções, música instrumental, trilha para filmes, curadoria... Já fui secretário de Cultura em Divinópolis. Estive no Conselho de Cultura do Estado de Minas, na época do (governador) Anastasia. Eu costumava dizer que o músico brasileiro tem que matar um leão por dia. Eu iria repetir essa metáfora numa entrevista quando me dei conta que o entrevistado era o Leão Lobo. Contei para ele e a gente riu muito.

Milton Nascimento irá se despedir dos palcos no final desse ano, com um show em Belo Horizonte. Qual foi o grande momento ao lado dele nos palcos?
Quando agente fez um “Tudo é Jazz” com o Milton, a gente trouxe o Ron Carter e o Wayne Shorter na praça de Ouro Preto, me coube escrever o texto sobre o Bituca. Ele acabou virando uma crônica que está presente no meu livro “Alma de Músico”. Eu tenho tantas histórias com o Bituca, mas vou lembrar aqui do dia em que quase tive raiva do Bituca. É maravilhoso testemunhar uma pessoa que vivia acima das mediocridades do meio artístico. Nunca o vi numa atitude que fosse pequena. Eu sempre vi um grande coração, uma grande alma, com uma grande preocupação com os amigos. Mas uma vez George Harrison, que não fazia show há muito tempo em Londres, foi participar de uma apresentação beneficente e convidou o Bituca para fazer a abertura. Como músico da banda, era a minha chance de conhecer um beatle e logo George Harrison, que eu amo de paixão. Fiquei com uma expectativa no Everest. Só que ele respondeu que não podia, pois tinha um compromisso com amigos. 

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