Valdeci Antônio Ferreira

‘APACs não deixam de ser prisões e têm disciplina extremamente rígida’

Izamara Arcanjo
20/06/2022 às 06:00.
Atualizado em 20/06/2022 às 09:41
 (Divulgação)

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Ao atuar com educação e trabalho, as Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (Apacs) são reconhecidas internacionalmente pela metodologia diferenciada, voltada para recuperação e reintegração social dos condenados a penas privativas de liberdade. São instituições com baixo custo por indivíduo (R$1.171,62 por mês), ausência de violência, menor índice de reincidência criminal (13,9%), poucas fugas. Para comemorar os 50 anos da primeira Apac no Brasil, acontece de 22 a 25/06, no Sesc de Venda Nova, em Belo Horizonte, o 9º Congresso das Apacs, com o tema “Ninguém é irrecuperável”.

“O congresso visa também estabelecer as bases para a expansão estratégica da metodologia das Apacs, a fim de que ela possa ser reconhecida como política pública penitenciária e boa prática na humanização do sistema prisional, aprimorando os índices de reincidência criminal e reduzindo os custos de construção e manutenção de unidades de ressocialização”, diz Valdeci Antônio Ferreira, fundador da Apac de Itaúna, em Minas. Diretor Executivo da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados, órgão que ampara e fiscaliza a metodologia das Apacs em todo o Brasil, também assessora Apacs no exterior e a metodologia junto à Prison Fellowship International, órgão consultivo da ONU para assuntos penitenciários. 

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 Qual a diferença da metodologia da Apac para o presídio comum?

O método da Apac se assenta em 12 pilares, que quando aplicados de modo harmônico irão produzir resultados positivos. Entre eles, a participação da comunidade, o recuperando ajudando outros recuperandos, o voluntariado, assistência à saúde, assistência jurídica, o mérito do trabalho, a educação, uma valorização humana na família. Quando esses elementos são trabalhados por uma equipe robusta de funcionários e voluntários, vamos obter o êxito na aplicação da metodologia. A grande diferença entre o método da Apac e o sistema prisional comum é que nas Apacs nós aplicamos uma terapêutica penal própria, em que o objetivo é sobretudo a recuperação do preso e a promoção da justiça restaurativa. Tratamos aquele que chega para cumprir pena na Apac como sujeito de direitos e deveres, lembrando sempre que nas Apacs a disciplina é extremamente rígida. Há uma rotina diária de atividades que se inicia às 6h e só termina às 22h, onde o trabalho é obrigatório, a educação é obrigatória, as tarefas de faxina, de limpeza, tudo isso é feito de modo harmônico.

Apac não é um modelo de franquia, não é uma fábrica de recuperação de presidiários, não quer substituir o sistema prisional comum. É uma alternativa viável, que nós temos a convicção de que funciona.

Como é a valorização do ser humano nas Apacs?

Quando o recuperando chega à Apac, a primeira coisa que fazemos é retirar as algemas, tirar o uniforme do sistema prisional e permitir que ele possa vestir roupas comuns. Dizemos: agora você pode levantar a cabeça! Via de regra, num sistema prisional comum, os presos ficam o tempo todo de cabeça baixa, com as mãos para trás e dizendo ‘sim, senhor’ ou ‘não, senhor’. Quando ele chega na Apac, nós dizemos que agora ele pode levantar a cabeça e ampliar aquele horizonte estreito que não ia além dos próprios pés, então ele começa a ter um horizonte de esperança. Aliado a isso tudo, quando ele chegar na Apac, nós vamos também entregar um crachá e ele será chamado pelo nome e não mais por uma matrícula, porque o resgate no método Apac se inicia exatamente pelo chamamento nominal. Ele vai sentar-se à mesa, fazer refeições utilizando faca e garfo, terá uma cama, um espaço próprio onde não haverá superlotação, ou seja, todo o tempo dentro da Apac nós teremos a valorização humana como sendo o grande pano de fundo de toda a nossa proposta metodológica.

Qualquer preso, independentemente do crime que tenha cometido, pode ir para Apac ou presos que cometeram crimes de maior potencial agressivo, maior violência, ficam excluídos deste sistema?

Nós partimos sempre da premissa de que ninguém é irrecuperável, o que existe é um tratamento inadequado. Partimos também da premissa de que não existem pessoas perigosas, o que existe são pessoas que não foram suficientemente amadas. Isto posto, é importante dizer que nós temos quatro critérios objetivos que nos ajudam a selecionar aqueles que poderão cumprir pena nas Apacs.

É possível encontrar nas Apacs homicidas, traficantes de drogas, estupradores, estelionatários, pessoas que cometeram pequenos furtos, assaltos, sequestros-relâmpago, pessoas condenadas a 5 anos, 10, 15, 80 anos de cumprimento de pena.

Quais são?

O primeiro é trabalhar com pessoas cuja situação jurídica já está definida, ou seja, só condenados da Justiça. O segundo critério é que a família mantenha residência e domicílio na comarca onde a Apac está. O terceiro é que ele manifeste por escrito o desejo de cumprimento de pena na Apac e o quarto é o critério da antiguidade, isto é, pela data da sentença, pois existe uma fila de espera e na exata medida em que temos vagas nas Apacs esses recuperandos poderão ser transferidos para o cumprimento de pena. Significa dizer que toda e qualquer pessoa que atenda a estes quatro critérios objetivos poderão cumprir pena na Apac. Significa também que não trabalhamos tendo em vista o tipo de crime ou o tempo de condenação. É possível encontrar nas Apacs homicidas, traficantes de drogas, estupradores, estelionatários, pessoas que cometeram pequenos furtos, assaltos, sequestros-relâmpago, pessoas condenadas a 5 anos, 10, 15, 80 anos de cumprimento de pena independentemente do credo, da religião que porventura ela possa professar. Se é jovem ou se é idoso, se é branco, se é negro, se é homem, se é mulher, se é travesti, se é homossexual não nos interessa. 

É comum as pessoas pensarem que as Apacs atuariam apenas com crimes de menor potencial ofensivo, no jargão da Justiça, porque vocês não trabalham com armas ou algemas. Como administram fugas ou conflitos?

A sua pergunta me faz remontar ao nosso grande idealizador do método Apac, o fundador Mário Ottoboni. Ele foi o primeiro que se lançou nesta seara tão difícil, neste terreno tão hostil, que é o sistema prisional comum. Muitas pessoas têm uma ideia errônea sobre o trabalho das Apac, exatamente porque não conhecem. Temos pessoas que dizem, por exemplo, que as Apacs são hotéis 5 estrelas. As Apacs não deixam de ser prisões, mas prisões onde a disciplina é extremamente rígida. A grande diferença é que nós aplicamos a Lei de Execução Penal, naquilo que toca aos direitos e aos deveres dos presos.

Apacs são o melhor modelo prisional? Um modelo pronto e acabado?

De forma alguma as Apacs são um modelo pronto e acabado. Não é um modelo de franquia, não é uma fábrica de recuperação de presidiários. As Apacs não querem substituir o sistema prisional comum. Então, o que são as Apacs? São uma alternativa viável que nós estamos apresentando aos estados do Brasil e também a outros países, que nós temos a convicção de que funciona.

O senhor falou sobre as filas de espera. São grandes? 

No Brasil, temos hoje 144 Apacs: 63 em funcionamento em sete estados brasileiros (Espírito Santo, Maranhão, Minas, Paraná, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Rondônia) e 81 em implantação. Em Minas, temos 46 Apacs e a grande maioria está no interior, sobretudo na região metropolitana. Temos uma fila de espera com mais de 300 pessoas que atendem os critérios objetivos que já elenquei, mas lamentavelmente precisam aguardar o momento oportuno da transferência.

Como o senhor vê este momento em que as Apacs completam 50 anos de existência no Brasil?

Celebrar 50 anos é celebrar uma grande esperança. As Apacs são ilhas de esperança em um oceano repleto de lágrimas de mães, de esposas, de filhos que gostariam de ter paz nos seus lares. Acabam sendo um oásis num deserto de sofrimento que é o sistema prisional comum. Cada vez mais, na medida em que a sociedade toma conhecimento da experiência, que as autoridades constituídas do nosso país, em especial os operadores do Direito, tomam consciência de que cada preso recuperado é um bandido a menos na rua, aí sim nós vamos ter uma multiplicação maior das Apacs de modo a atender aqueles que continuam sofrendo no sistema prisional não só em Minas ou no Brasil, mas no mundo inteiro.

Quais os índices de recuperação destes presos?

O último índice aferido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais é de 13,9% de reincidência nos crimes, ou seja, quando você compara com o sistema prisional comum, que no Brasil é em média de 85%, então se verifica que há uma redução drástica nos índices de reincidência. Temos que nos lembrar também do custo porque um preso na Apac custa em torno de um terço (R$ 1.100), quando comparado com o custo per capita médio do preso no sistema prisional comum, que seria de R$ 3 mil a R$ 3,5 mil. Há dados em que em alguns Estados este valor seja superior a R$ 4 mil.

Se o sistema funciona a um custo menor, por que não é utilizado para substituir definitivamente o sistema prisional tradicional, mais preconceituoso, injusto, desumano e que não socializa os detentos?

São várias as razões, mas, sobretudo, há duas principais. A primeira é o desconhecimento. Embora estejamos celebrando 50 anos de Apacs, a metodologia ainda é muito desconhecida seja para o público comum, seja para as autoridades constituídas ou os operadores de Direito. Estou convencido de que quanto mais o método Apac se tornar conhecido das pessoas, mais rápida será a sua multiplicação.

Outro aspecto que provavelmente contribui muito para a estagnação de um crescimento mais arrojado da experiência são os ataques que as Apacs recebem. Existe um status quo das prisões. Não é de hoje que a indústria que mais cresce no país é a indústria do preso. Ela cresce mais do que o agronegócio, cresce mais do que a indústria farmacêutica, cresce mais do que a indústria automobilística. São índices assustadores de crescimento e as nossas prisões estão superlotadas, elas vivem hoje o caos e estão caminhando para o colapso até porque a maioria das prisões no Brasil estão dominadas por facções criminosas. Ao longo da história, muitas foram as pessoas, as empresas, as grandes corporações que sempre viveram e continuam vivendo às custas da miséria dos presos e familiares.

Nadando contra a correnteza, celebrar 50 anos é celebrar 50 anos de uma luta contra o preconceito, esse preconceito que está arraigado na nossa cultura e que reverbera aquela ideia de que o preso tem que sofrer, de que o preso tem que morrer, que o bandido bom é bandido morto.

O congresso que vocês vão realizar neste mês faz parte das comemorações dos 50 anos da Apac?

Sim. Esse grande evento será celebrado de 22 a 25 de junho em Belo Horizonte nas dependências do SESC. Receberemos delegações de todas as Apacs, que já administram centro de integração social e também em diferentes estágios. Participarão dezenas de autoridades de todos os setores, inclusive pessoas de outros países para esse grande momento celebrativo. É um momento de agradecer a Deus, que nos chamou um dia para atuar nesta causa, que não tem apelo social, mas eu não tenho dúvidas de que é uma das causas no meu coração. O que me acalenta o coração é saber que eu não estou sozinho nessa causa, são milhares e milhares de homens e de mulheres pessoas abnegadas, voluntários que trabalham diuturnamente na Apac, que chegam ali, que estendem as mãos e que apresentam um amor que é incondicional, um amor que é gratuito. São pessoas que creem piamente na recuperação do ser humano. 

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