Entrevista

‘Golpe do amor devasta dignidade e autoestima das vítimas’, destaca especialista em Direito

No livro “Eu confiei nele”, a oficial do Ministério Público, Ana Cristina Ribeiro Alves, dá dicas para mulheres que acabaram sozinhas e endividadas

Da Redação
portal@hojeemdia.com.br
Publicado em 24/07/2023 às 07:03.
Ana Cristina é especialista em Direito público e privado (Divulgação)

Ana Cristina é especialista em Direito público e privado (Divulgação)

Crime recorrente, mas que faz cada mais vítimas pelas redes sociais, o estelionato sentimental é tema do livro “Eu confiei nele”, da oficial do Ministério Público de Minas Ana Cristina Ribeiro Alves. A publicação visa a conscientizar a sociedade, evitando novas histórias de mulheres apaixonadas que acabam sozinhas e sem dinheiro.

Especialista em Direito público e privado, Ana Cristina explica como esses crimes ocorrem, aborda a importância da denúncia e propaga mensagens positivas a partir da história de uma vítima que superou o trauma. Nessa entrevista, ela também cita os principais canais de denúncia e ressalta a necessidade de uma rede de apoio.

“Eu confiei nele” foca na história de uma vítima de estelionato sentimental na internet. O que a levou a tratar desse assunto por meio da ficção?
Em primeiro lugar, foi a necessidade de dar voz às vítimas que não tinham coragem de procurar as autoridades policiais, com o receio de que o golpe viesse a público. Segundo, para mostrar os sinais apresentados pelos golpistas, como forma de prevenção. Por último, para mostrar que é possível a superação e recuperação da autoestima.

O que é o “golpe do amor” e como ele pode ser identificado no meio virtual?
É a conduta criminosa praticada por alguém que esconde sua verdadeira identidade, valendo-se na maioria absoluta dos casos do meio virtual, no qual, usando técnicas de persuasão linguística e explorando algum tipo de vulnerabilidade, induz a pessoa a uma dependência emocional, direcionada à obtenção de lucro financeiro em prejuízo da vítima.

O que pode contribuir para uma mulher ser vítima desses golpistas?
A vulnerabilidade contribui sobremaneira para vitimar mulheres nos golpes do amor, e essa situação pode decorrer de vários fatores. Em especial, a vulnerabilidade decorrente da solidão e do isolamento social, o que as leva a criar um “universo paralelo”. Também a vulnerabilidade decorrente da situação econômica das vítimas que, na maioria dos casos, são de classe média baixa e lutam para prover o básico para a subsistência, sem maiores luxos, os quais são oferecidos pelos golpistas, como viagens, presentes caros e participação em contratos altamente rentáveis. Há ainda a vulnerabilidade decorrente da perda de um ente querido, o qual esteve ao lado da vítima nos momentos mais importantes da vida dela. E a vulnerabilidade decorrente de problemas de saúde, os quais podem levar a vítima a acreditar que a sua condição a faça merecedora de algo melhor que o dia a dia pode oferecer, e que seja objeto das falsas promessas dos golpistas.

As vítimas, na maioria das vezes, culpam-se pelos prejuízos financeiros e emocionais, em consequência dos comentários e julgamentos da sociedade em que estão inseridas, o que só agrava a situação

Se uma pessoa é vítima do estelionato, o que ela pode fazer para denunciar? E o que as pessoas ao seu redor podem fazer para acolhê-la?
A vítima pode procurar a Polícia Militar (caso de flagrante) e Civil, além do Ministério Público. Há uma ferramenta gratuita no site www.infotracer.com, na qual é possível descobrir o IP do e-mail suspeito. Se ele estiver fora do Brasil, é possível utilizar o site www.usa.gov, com ligação ao FBI. Já as pessoas ao redor podem ouvir a vítima, evitando julgamentos desnecessários e estimulando-a a práticas saudáveis e edificantes.

Durante a história, você descreve os principais sinais de alerta desse tipo de crime, mas também lança um olhar para a situação de vulnerabilidade das vítimas. Qual a importância desse acolhimento para o público que sofreu esse golpe?
A natureza do golpe virtual do amor provoca consequências devastadoras na dignidade e autoestima da vítima, fazendo-a, muitas vezes, sentir-se inútil e até mesmo ridícula. A vulnerabilidade existente antes do golpe é agravada, sendo, às vezes, alimentados pensamentos suicidas. O acolhimento familiar, dos amigos e até mesmo de órgãos da assistência social, irá ajudar na superação do trauma.

Como a senhora avalia a assistência dada às vítimas? É suficiente?
A maioria das vítimas é classe média baixa, o que significa dizer que a assistência da qual necessita será prestada pelo Sistema Único de Saúde, em especial pelas secretarias municipais de Saúde e de Assistência Social. Como se sabe, os recursos desses órgãos são limitados e faz com que a assistência às vítimas não seja suficiente. Um aspecto que deve ser observado é o das estatísticas: as polícias, o Ministério Público e o Poder Judiciário registram os procedimentos em seus sistemas. Por isso, entendo fundamental a comunicação do crime às autoridades, para que sejam feitas investigações e seja indicada ao Poder Público as consequências desse tipo de crime, bem como a relevância do fortalecimento da rede de apoio às vítimas, seja na Saúde, seja na Assistência Social. 

A maioria das vítimas é classe média baixa, o que significa dizer que a assistência da qual necessita será prestada pelo Sistema Único de Saúde, em especial pelas secretarias municipais de Saúde e de Assistência Social

O que mais pode ser feito para ajudar na recuperação das vítimas?
O primeiro passo para a vítima recuperar-se desse tipo de golpe é reconhecer a existência dele. Tive a oportunidade de conversar com algumas vítimas e familiares de vítimas e constatei que elas entravam em estado de negação. Pensar dessa forma predispõe as vítimas a sofrerem novos golpes, causando um círculo de revitimização e agravamento das consequências. A adesão dessas vítimas a algum grupo/associação civil que atua em paralelo ao Estado e que dentre os seus objetivos e serviços esteja o apoio psicológico às vítimas, para que elas entendam melhor suas emoções e saibam como lidar com elas, seria um grande avanço, pois poderia alcançar os mesmos resultados sem publicidade. Necessário, contudo, o estabelecimento de parcerias entre a administração pública e as associações privadas, com o repasse de auxílios financeiros/subvenções, tendo em vista o serviço público relevante que tais pessoas jurídicas desempenham. Fortalecer o terceiro setor poderia trazer muitos resultados positivos e “desafogar” as Secretaria de Saúde e de Assistência Social.

Para além do golpe, você apresenta uma narrativa de superação, de uma mulher que conseguiu se livrar de muitos traumas. De que forma essa perspectiva positiva pode ajudar a reconstruir a autoestima dos leitores que se identificam com a protagonista?
Nossa mente se alimenta daquilo que oferecemos a ela: se insistirmos em recordar coisas negativas, não sobrará espaço para as positivas. No caso da personagem, o novo aprendizado ocupou a mente dela, com redirecionamento das energias gastas nas lembranças e lamentações a respeito do golpe. E sentir-se capaz de fazer algo novo e desafiador acabou com a ideia de inutilidade, resgatando a autoestima.

Nossa mente se alimenta daquilo que oferecemos a ela: se insistirmos em recordar coisas negativas, não sobrará espaço para as positivas

Por que devemos falar mais sobre o estelionato sentimental?
Porque é uma forma criminosa que cresce a cada dia, em um ambiente chamado por muitos de “terra de ninguém”, já que, apesar de existirem normas regulamentando as relações virtuais, nosso país ainda apresenta déficit em relação à estrutura necessária para identificar e punir os golpistas, além da deficiência na assistência às vítimas, ainda consideradas, por muitos, culpadas pelo golpe sofrido.

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