Médica mineira 'receita' youtubers e intelectuais negros para paciente com depressão

José Vítor Camilo
12/02/2019 às 21:07.
Atualizado em 05/09/2021 às 16:31
 (Reprodução / Redes Sociais)

(Reprodução / Redes Sociais)

Na receita, nada de remédios. Pelo contrário: indicações de influenciadores digitais e intelectuais negros. Foi essa “fórmula” que a médica Júlia Rocha, de BH, prescreveu a um dos pacientes, de 22 anos. Negro, gay e evangélico, o jovem sofre de depressão profunda e tentou se matar, chegando a ficar internado em estado grave. O rapaz também faz acompanhamento psicológico e psiquiátrico, combinado a medicamentos e ao apoio da família.

O resultado da recomendação inusitada foi compartilhado pela profissional nas redes sociais. Na publicação no Instagram, que já tem mais de 3 mil curtidas, Júlia conta que o jovem estava mal por conta da culpa que carregava por, segundo ele, não conseguir “corrigir a sexualidade”.

A receita entregue por Júlia ao paciente trazia indicações de canais no YouTube, livros e perfis de intelectuais nas redes sociais. Dentre os nomes “prescritos”, AD Junior, negro, homossexual e ateu. Na internet, ele passou a comentar sobre racismo e negritude após participar de um vídeo sobre turismo e receber ofensas racistas.

“Ele já estava amparado por psiquiatra, psicólogo, em acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e outras Drogas (Caps-AD) e tinha o apoio da família. Por isso coube essa ‘receita’, justamente por que ele já havia sido cuidadosamente medicado, o que é muito importante, pois o risco de vida é iminente numa situação de depressão. Mas, para mim, precisava se aprofundar no entendimento do seu lugar social como um homem gay, negro e periférico. Tem horas que só enxergando e conhecendo as estruturas que nos oprimem pra conseguir dar o próximo passo”, diz a médica, que também é negra. Especialista em Medicina da Família e Comunidade, ela afirmou ao Hoje em Dia sempre buscar entender e individualizar cada paciente.

Quinze dias depois do atendimento, Júlia conta ter reencontrado o rapaz. “Ele sorriu e me deu um longo abraço. Aquele instante durou uns anos”, postou. Segundo ela, o paciente afirmou estar bem melhor e até namorando. 

Tratamento

O tratamento da doença pode ser longo e complexo. A psicóloga e psicanalista Thayara Barcelar, que há 10 anos atua com foco no público jovem e adulto, explica que, antes de tudo, é preciso diferenciar a depressão dos traços depressivos de personalidade. Ela afirma que, com poucas sessões, é impossível ter um diagnóstico preciso, já que são necessários pelo menos três meses de acompanhamento do paciente.

“Se a depressão for constatada, o tratamento tende a durar pelo menos um ano”, diz. “Se a intervenção foi mais curta, provavelmente a pessoa só estava vivendo uma fase depressiva, o que é bem diferente”, explica. Thayara ainda destaca que medicamentos mais pesados podem ser receitados em casos onde haja, por exemplo, o risco de suicídio do paciente.

Histórico

Nascida em Belo Horizonte, Júlia se formou em medicina em Pouso Alegre, no Sul de Minas, e fez a residência médica no Hospital Odilon Behrens, na capital. Desde então ela já trabalhou em Pará de Minas, na região Centro-Oeste do Estado, e no Rio de Janeiro, antes de voltar a trabalhar na região metropolitana de Belo Horizonte. Em entrevista ao Hoje em Dia, a médica conta que é especializada em Medicina da Família e Comunidade e que, por isso, tenta sempre entender e individualizar cada paciente.

De acordo com Júlia, esta é a primeira vez que ela faz esse tipo de prescrição, porém, sempre recomenda leituras, blogs, sites, autores que admira e até amigos para os pacientes. "Eu acho que isso traz um novo olhar sobre o adoecimento, não como algo simplesmente biológico, mas um adoecimento que considera questões sociais, o contexto familiar. Acho que isso traz mais repertório e recurso para os pacientes poderem lidar com suas origens", complementa. 

(Colaborou Raul Mariano)

Confira algumas das sugestões feitas pela médica:

- Para assistir no transporte público, na fila do banco ou em casa mesmo: 

Canal do Spartakus Santiago: Negro, nordestino e LGBT, o youtuber e publicitário formado em comunicação pela UFF utiliza seus vídeos na internet para buscar aumentar o entendimento sobre questões importantes na internet, como racismo e LGBTfobia. 

Canal do AD Júnior: Negro, LGBT e ateu, o brasileiro mora atualmente em Hamburgo, na Alemanha. De lá, ele produz de forma independente o canal que, segundo ele mesmo, "deseja responder a questões sobre a diáspora negra no Brasil e no Exterior". Ele começou a falar sobre racismo e negritude após participar de um vídeo sobre turismo em um canal do YouTube e receber ofensas racistas. A partir daí, AD Júnior transformou as injúrias sofridas em resposta sobre o racismo estrutural da nossa sociedade. 

- Para ler nas horas vagas e seguir nas redes:

Conceição Evaristo: Nascida em uma comunidade na Zona Sul de BH, ela é poetisa e romancista, atuando nas áreas de Literatura e Educação. Em sua obra, a escritora busca abordar temas como a discriminação racial, de gênero e de classe. Uma de suas obras mais recentes, o livro de contos "Olhos D'água", pode ser lido on-line clicando AQUI.

Djamila Ribeiro: Filósofa, feminista e acadêmica brasileira, Djamila é pesquisadora e mestra em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo. Apesar de ter se tornado conhecida em todo o país pelo ativismo nas redes, ela também é autora de livros como "Quem tem medo do feminismo negro?" e "O que é lugar de fala?". O último deles, inclusive, integra neste ano como bibliografia requisitada para o processo de seleção do Mestrado e Doutorado do Diversitas USP. 

Juliana Borges:  Pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP), escritora e colunista do Blog da Boitempo, Juliana é autora do livro "O que é encarceramento em massa?", que explica a relação entre as altas taxas de encarceramento e o racismo no Brasil. 

Silvio Almeida: Natural de São Paulo, o jurista e filósofo é doutor em filosofia e teoria geral do direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco). Ele também atua como professor das faculdades de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP) e da Universidade São Judas Tadeu (SP). Ele é autor de vários livros, entre eles "O que é racismo estrutural", livro indicado por Júlia ao seu paciente. A obra pode ser adquirida na internet, mas, até lá, você pode ouvir o autor falar um pouco sobre o assunto neste vídeo divulgado pela editora Boitempo.  

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